quinta-feira, 24 de março de 2016

História gótica

11.  À volta do estrangeiro, várias caras vermelhas fumavam os seus cachimbos, desconfiados. Melhor, desiludidos. Tinham-lhes prometido uma história espantosa, uma história digna do ar aterrorizado com que o homem entrara na taberna, mas até agora ouviram apenas coisas que não lhes diziam nada, sobre gente que não compreendiam, com as suas angústias e os seus lenços perfumados. 
Nem a mulher do padeiro, o homem mais próspero da aldeia, vestia rendas e veludos, passava os dias a ler os romances da moda, ou a conversar com as amigas sobre bailes e novidades vindas de Paris. Nem que sua Excelência o Senhor Bispo, desse sim, já os aldeões tinham ouvido falar, viesse à aldeia na sua carruagem com portas de ouro, tinham ouvido dizer. Que Sua Excelência o Senhor Bispo tinha uma carruagem com portas de ouro. E uma bacia de ouro onde lavava as mãos. E pratos de ouro onde comia. E os óculos de ouro, e os tacões dos sapatos de ouro, e os castiçais de ouro. Onde ia buscar Sua Excelência tanto ouro, não sabiam. Mas para a Maior Glória de Deus sabiam ser necessário que Sua Excelência se rodeasse dos mais preciosos metais. Nada de mais natural. Tão natural como terem as mãos sujas os lavradores e as mãos inchadas as lavadeiras. E na aldeia havia lavradores e lavadeiras, ferreiros e pintores de paredes, pastores e mineiros, mas nem um único bispo. Nem um padre, como se viu. Há alguns anos, numa reunião dos habitantes da aldeia, tinha-se decidido que havia que construir uma capela, e a seu tempo uma igreja, e então não haveria remédio senão ser um padre enviado para tomar conta do novo templo. A construção começou, as poucas horas vagas consumiram-se a escavar as fundações e preparar a pedra, mas a obra não avançava. Parecia que durante a noite alguém destruía o que era construído durante o dia. O mistério arrastou-se ao longo de vários meses e já havia quem fizesse o sinal da cruz e murmurasse t'arrenego sempre que olhava para o estaleiro inútil. Convenceu-se a população que ali andava dedo do demónio, que o tinhoso se divertia à custa da devoção dos crentes, que a única solução seria exorcizá-lo das madeiras e dos escopos com que laboravam em vão para erigir o edifício. Foi chamado o padre. Passaram mais alguns meses e foi consultado o bispo. Outros meses foram gastos a ouvir as opiniões dos doutos, e a retirar algum benefício das suas disputas. Decorrido mais de um ano, veio a autorização do bispo, que enviou ao padre um homem santo experimentado na luta contra o chifrudo. Foram benzidas as ferramentas e os materiais. Foi benzido o terreno onde se construía. Foram benzidos os homens que construíam. Feito isto, passou-se ao exorcismo, quarenta dias e quarenta noites batalhou o santo contra o demo, mas foi este que saiu vencedor. Venceu pelo cansaço e pela impaciência, porque recusou manifestar-se que não fosse roubando, sempre de noite, as maçanetas das portas. Esgotados o homem santo, o padre, e os aldeões, levantados os olhos aos céus, alguém que os levantara um pouco menos apontou para o alto da colina e para o castelo que nela se equilibrava. Chamou a atenção de todos, apontando sempre, e foi compreendido. Não era o canhoto o culpado, eram eles.

1 comentário:

  1. Agora, sim. Tudo parece fazer crer que se irão arregalar os olhos de espanto e as bocas se irão escancarar de terror...

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