quarta-feira, 16 de março de 2016

História gótica

2. Já perdeu a conta às voltas que deu à cela.
Arrastou de tal modo a perna esquerda, quase desfeita pela lâmina de um turco no Ataque Nocturno de Târgoviste, que a sandália de couro ficou por um fio. Não bastaram os mais de vinte e três mil turcos empalados porque um sultão exigiu o pagamento da jizya a um príncipe da Ordem do Dragão. Foram empalados depois outros vinte mil. Com um gesto da mão afastou a recordação do sangue e dos gritos de tantos homens mortos, e mortos de maneira tão atroz. Magro, ossudo, alto, vestido com uma túnica de estopa suja, de uma cor que pode ter sido cinzenta, ou castanha, ou branca, e com uma faixa larga com que prende à cintura um punhal e um crucifixo, aproxima-se da janela estreita aberta na pedra e perscruta a noite lá fora, forçando os olhos e tentando ver alguma figura a vaguear pelas ameias. Mas só se ouvem os ruídos selvagens dos animais nocturnos. Passa os dedos pela cicatriz que lhe atravessa o rosto, como faz sempre que se perde em raciocínios difíceis e conclusões malsãs. Pensa nos longos séculos que o esperam e na função terrível que executará sem saber até quando. Batem, de repente, à porta pesada da cela com pequenas pancadas e ela abre-se com um rangido aumentado pelo total silêncio do interior do castelo. Entra uma mulher pálida. À distância, parece ser jovem. Mas quando se aproxima da luz inconstante do archote, mostra tanto uma face lisa como uma face enrugada. Parecem cair-lhe sobre os ombros cabelos esparsos e cinzentos, mas também uma cabeleira escorrida, preta como as asas do corvo e com um brilho azul. Os olhos são à vez esvaziados e brilhantes, perspicazes e baços. Nas mãos as veias grossas contrastam com a pele imaculada, e tanto é de alabastro o pescoço como de pergaminho gasto. Mantêm-se os mesmos o vestido prateado coberto por uma capa cor de vinho, e o medalhão oval. "É preciso fazer alguma coisa", diz.

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