segunda-feira, 28 de março de 2016

História gótica


20. Na carruagem, a rapariga não ouvia o matraquear da voz do padre nem sentia o hálito do boticário, perfumado por pastilhas de açúcar e violetas.
Um solavanco mais forte fez cair o seu livro ao chão, prontamente apanhado pela mão fina do boticário. O padre não fez um movimento sequer para apanhá-lo. E a quem lhe perguntasse se se esquecera das suas boas maneiras, responderia com a sua implacável artrose, artrite, lombalgia, hérnia, ciática, enfim, aquilo que lhe ocorresse no momento. Nas suas viagens a rapariga aprendera a deixar de prestar atenção às pessoas e coisas à sua volta. Queria concentrar-se na finalidade que a levava de terra em terra, de testemunha em testemunha. Só quando o livro pousado no seu colo escorregou e bateu no chão voltou a reparar no que a rodeava. Com alívio, confirmou que o livro não se abrira e que das suas páginas não tinham caído a fotografia e a carta que ali guardava. O farmacêutico esperava um agradecimento, um sorriso pelo menos, mas a rapariga, calada e circunspecta, nem mudou de expressão. Uma expressão tão carregada numa pessoa tão jovem, pensou o farmacêutico. A rapariga apertou o livro contra o peito com um suspiro imperceptível. O padre franziu a sobrancelha. Interpusera-se um objecto indesejado entre ele e os encantos que o distraíam da perspectiva de regressar àquela aldeia selvagem onde se sentia sempre tão mal. Voltou a pensar em Zselyk e nas caras grosseiras dos camponeses. Brutos supersticiosos, murmurou, gente repugnante. Fechando os olhos, aproximou do nariz o lenço que molhara em água de colónia antes de sair de casa. Por um momento, julgou estar no teatro da cidade, num daqueles intervalos da peça mais recente, quando os leques das senhoras espalham fragrâncias pelo ar. Discute-se o final do primeiro acto, fumam-se charutos. Mas durou pouco tempo o devaneio do padre. A carruagem parou sem qualquer deferência pelas suas dores de ocasião. A rapariga foi a primeira a levantar-se. Arrancou das mãos do palafreneiro a mala de viagem, olhou em volta e dirigiu-se sem hesitação para a taberna. Uma vez lá dentro, perguntou se havia quartos, para surpresa da taberneira. Mas o cálculo das moedas que resultariam da sua resposta misturou-se com a surpresa e disse que sim. A cupidez é o antídoto universal. "Sente-se, vou mandar a moça arejar o quarto." Dizendo que ia buscar um refresco, correu escada acima para procurar uns lençóis e umas toalhas suficientemente brancos para uma hóspede de ar tão delicado. Que quarto lhe hei-de dar?, pensou. O meu, acho. É o maior e o único que está limpo. É só fazer a cama. E sacudir os tapetes. Quando subia para o quarto, a rapariga não reparou na escuridão da escada ou nos cantos mal varridos e cheios de lixo. Tirou da mala aberta sobre a cama o livro com a fotografia e a carta. Pô-las no bolso do casaco e saiu.

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