terça-feira, 3 de março de 2015

Não percebi...

Das medidas propostas por António Costa, encalhei logo nesta:
2.1) Actualizar a Carta Agrícola de Portugal, para que definidos os locais de melhor resultado de produção se evitem os excessos, que originam desequilíbrios dos preços, permitindo apoiar essas produções.
Quer isto dizer que eu não percebi a lógica de como isto irá funcionar no mercado. Vou explicar a minha deficiência de compreensão para que talvez um de vós me possa esclarecer como é que isto é melhor para Portugal.

Na produção agrícola, há uma tremenda incerteza e risco. A piada que se usa é que os agricultores adoram risco, são "risk lovers" na gíria economicista. Parte do risco vem do preço dos inputs, como fertilizantes, que são o resultado do que se passa no mercado mundial e estão ligados ao mercado da energia porque a urea, um fertilizante que fornece nitrogénio, é produzida com gás natural. Quando o milho começou a ser usado para fazer etanol nos EUA, o mercado de fertilizantes ficou ainda mais ligado ao mercado de energia porque o milho consome muito nitrogénio--e também há a óbvia ligação de o etanol ser energia. Quem usa água subterrânea para irrigar os campos, também consome energia para extrair a água. Em Portugal, também temos de ter em conta que os preços de energia para transportar os produtos têm impostos altos.

Mas a maior parte da componente de risco vem da meteorologia, isto é, quando o tempo é bom, a produção agrícola é muito boa e o excesso de produto no mercado deprecia os preços. Em anos de mau tempo com secas ou demasiada chuva, parte da produção fica comprometida e a escassez melhora o preço, isto é, os produtores que sofrem menos perdas conseguem ter melhor retorno. Mas o tempo é acima de tudo uma grande incógnita. Sabe-se lá o tempo que vai fazer dois meses depois de se plantar as sementes...

O retorno de um agricultor depende de duas coisas: o custo de produzir o produto e o preço ao qual o produto é vendido. Quando o agricultor decide o que plantar, tem melhor informação acerca do custo, mas o preço final a que o produto vai ser vendido é desconhecido. Os agricultores são normalmente price-takers, um agricultor não consegue influenciar o preço de mercado. Como fazemos parte da União Europeia, temos também de ter em atenção os preços internacionais, pois o preço de um produto em Portugal não pode ser muito mais alto do que o preço dos produtos noutros países. A lei do preço único, em que os preços diferem no espaço e no tempo pelo custo de transporte e armazenagem, tem de ser observada.

No entanto, o risco do preço pode ser mitigado por várias vias. Por exemplo, nos produtos em que há mercados de contratos de futuros, o produtor pode vender a sua colheita antecipadamente. Isto reduz o risco de perda monetária, mas também pode reduzir o potencial de ganho em anos em que há escassez e os preços no mercado spot seriam muito altos. O objectivo dos contratos de futuros é reduzir a incerteza, isto é, eliminar as caudas da distribuição probabilística dos preços, eliminam-se os preços muito maus, mas também os preços muito benéficos porque sendo os produtores price-takers é virtualmente impossível que consigam ficar sempre a ganhar ao mercado. Outra forma de mitigação de risco pode ser o uso de seguros agrícolas, muitas vezes estes são subsidiados pelo estado, em que quando as perdas da colheita excedem um certo valor, o seguro é activado desde que o agricultor não tenha sido negligente na gestão da colheita. Ainda uma outra forma de gerir o lucro na agricultura é o agricultor fazer um contrato antecipado com alguém que usa o produto, por exemplo, um produtor de batatas poderia vender a sua colheita a um processador de batatas ou a uma empresa que vendesse batatas ao público.

Relativamente aos custos, há que ter em atenção os custos variáveis e os custos fixos. Os custos variáveis são os inputs, onde os produtores agrícolas são também price-takers. Nos custos fixos, que são custos de curto prazo, inclui-se, por exemplo, a maquinaria, a os custos da terra, os edifícios, etc. Para os custos fixos é muito importante o volume de produção para que o produtor consiga obter economias de escala, isto é, dividir estes custos por uma quantidade maior de forma a que o peso dos mesmos no custo final seja o mais pequeno possível.

Perante todos estes factos, a solução que António Costa propõe traduz-se essencialmente em criar uma condição permanente de escassez em Portugal para garantir preços altos para os agricultores. Só que preços altos para os agricultores portugueses são preços altos para os consumidores e processadores e distribuidores portugueses no mercado aberto da União Europeia. Isto implica que é uma medida impossível porque o mercado iria fazer arbitragem de produto e os produtos agrícolas estrangeiros entrariam em Portugal e depreciariam os preços. Portugal é um price-taker--se António Costa ainda não entendeu isto, não reúne as condições mínimas para ser Primeiro Ministro de Portugal. E depois há a tal história dos custos fixos, pois ao reduzir a escala de produção, os produtores estão a aumentar o custo por unidade. E ao ter uma produção reduzida a um custo superior ao preço de mercado mundial, os produtos portugueses não seriam muito atractivos para serem exportados. Portugal só consegue crescer se conseguir exportar mais! Como é que isto ainda não está interiorizado em todos os candidatos a Primeiro Ministro?!?

Quais seriam propostas muito mais sensatas para a agricultura portuguesa? Uma seria identificar produtos que têm escassez no mercado mundial, por exemplo, os produtos gourmet, como os cereais antigos, os legumes e frutas menos conhecidos e que têm procura cada vez maior, e educar os produtores de quais as colheitas mais vantajosas. Outra seria desenvolver serviços de apoio para os agricultores poderem tomar decisões mais educadas e fazerem gestão de risco, por exemplo, ter boas bases de dados de preços de produtos e inputs, bons orçamentos de produção para os diferentes produtos e regiões de Portugal; outras ainda seriam incentivar o diálogo entre os agricultores e a indústria processadora e distribuidora, ter em atenção as necessidades da agricultura quando se planeia infraestrutura, desenvolver bons planos de gestão de água e solos, etc. Também se deveria pensar em desenvolver campanhas de diferenciação do produto e educação dos consumidores. Em suma, conhecer bem o mercado em que operamos e pensar fora da caixa.

6 comentários:

  1. Rita, admitindo à partida a injustiça do meu comentário e que muita coisa tem mudado, infelizmente (por via da UE) a política agrícola nacional resume-se a:

    - Choveu pouco, houve seca, queremos indemnizações.
    - Choveu muito, estragou a colheita, queremos indemnizações.
    - Nem choveu muito nem choveu pouco, as margens são pequenas, queremos subsídios para "investir".

    Rinse and repeat. Qual mercado qual carapuça.

    Ainda há pouco ouvi uma fantástica da associação de produtores de leite (ver primeiro comunicado em https://aprolep.wordpress.com/comunicados/). Quer dizer, em Portugal o preço do leite (suponho que pago pelos intermediários aos produtores) é baixo, lá fora pagam mais, então porque raio o vendem cá? Se as cooperativas leiteiras acabaram / transformaram-se em empresas "puras e duras" a culpa é dos cooperantes ou não?

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    1. Carlos Duarte, gosto sempre dos seus comentários porque aprendo sempre muito. Não acho o comentário injusto; acho que o Carlos partilha da minha frustração com a falta de educação no planeamento de uma política agrícola que faça sentido para Portugal e no papel do estado como facilitador de soluções mais eficientes do que a actual.

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    2. Rita, também encalhei nessa parte do "programa" do A Costa. Não tenho dúvida que o homem, mal assessorado como está, não tem queda para números, mas não o sabia tão ignorante de matérias importantes, como é o caso da agricultura, aceitando subscrever umas linhas de orientação mais próprias do regime que vigora em Cuba (ou da Coreia do Norte ou na Venezuela), do que num país integrado na EU, onde este sector está fortemente regulamentado.
      E concordo consigo: se o A Costa não mudar, não tem condições para ser PMinistro de Portugal.

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  2. o problema é o oposto: se ele não mudar, corremos o risco de o ter como primeiro ministro, mesmo sem condições... se ele mudar, corremos o risco de que não seja primeiro ministro, mesmo tendo condições... :-/

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    1. Mas, Artur, será que esta é a melhor pessoa para liderar Portugal durante um período de crise? A única coisa que eu vejo é vestígios do passado nas suas propostas: seleccionou o melhor de António Guterres e José Sócrates e propôs essas medidas. Acho uma tremenda falta de imaginação e nós já temos um problema actual de falta de imaginação, logo substituímos um por outro.

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  3. não é de todo, com ou sem crise... mas o paradoxo mantém-se (imho)... somos capazes de o ter que aturar como primeiro ministro, porque não vai mudar... e é assim que o PS o quer (este PS mumificado, governado à distância por um faraó ou dois...); se ele fosse capaz de mudar, nem sequer estava onde está... estaria outro.

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