terça-feira, 3 de novembro de 2015

Frases famosas 12


12. Vinha ruminando na questão desde que, na tarde de um domingo quente, assistira ao assassínio de Bartolomeu Beltrão. Era este Bartolomeu figura bem conhecida de cafés e jogos de cartas, que acompanhava de impropérios vernáculos e cuspidelas para o chão. Reinou deste modo dez anos, até ao domingo fatal em que, aos gritos de batoteiro e insinuações nada veladas acerca da virtude da mãe, lhe espetaram na órbita do olho esquerdo um picador de gelo deixado com negligência sobre o balcão. Também ali pegara a moda da caipirinha, só que adaptada ao bagaço. Era o assassino um rival à altura de Bartolomeu, e não se deixou intimidar pelo tufo de pêlo farpado que lhe saía da camisa como arame. Nem pela tatuagem de uma serpente rodeando-lhe o pescoço. Avançara sobre o bruto hesitando nada. Sem tremer da mão, certeiro como um Guilherme Tell, mas sem arco. Não foi instantânea a morte de Bartolomeu. Agarrado ao cabo do picador de gelo, uivou aos tombos pela sala, arrastando cadeiras e derrubando mesas. Quem tentou ajudá-lo levou murros e pontapés sobre-humanos, pois que às vascas da morte a vontade de sobreviver multiplica as forças. Foi também difícil agarrar o assassino, posto que perceber que se vai perder a liberdade do mesmo modo aquece as paixões para lá do ponto de fervura.  Quem de fora ouviu gritos e uivos correu para o estabelecimento, e foram tantos a puxar o homicida, agora que lhe não enchiam as mãos quaisquer objectos cortantes ou agudos, que as roupas deste quase não resistiram inteiras. Não se meteu na descomposta multidão aguada aquele inicialmente apresentado que, desde o caso violento, não pudera evitar ruminar nele. Por vezes, um passo acima das multidões, há espectadores reflexivos. A este não lhe custara o aparato grotesco. E não meditava sobre esta nossa espécie, para a qual é tão fácil aniquilar o semelhante. Servem-nos os pretextos mais frívolos, jogos de cartas ou desrespeito pelas regras da prioridade. É tantas vezes pouco importante o que nos basta para mudar um amigo em cadáver. O que sói conduzir-nos a conclusões lapidares como esta, por trás de cada sorriso amigável espreita um esgar homicida. Não foram deste teor as ruminações suscitadas. Mais do que moralista era esteta este espectador pensativo. Doía-lhe mais o como se fazia do que o que era feito. Escolheu um dia de aniversário e uma vítima delicada. Abriu a porta e disse, com sua licença. Se for preciso matar alguém, não custa nada ser bem educado. 

12 comentários:

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    1. Obrigada, Luís! Prometo tentar ser holística, mas não garanto.

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  2. O texto é fantástico! De que obra se trata?

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  3. Quem dera a muito escritor encartado fazer de manhã uma peça tão fabulosa... Dou-lhe os meus parabéns (que pouco valem, porque sou um ninguém) e espero que nos continue a deleitar com textos destes.

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    1. Muito obrigada! Vou continuar, sim, é a condição central do meu contrato.

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    1. Tive de ler várias vezes e, de cada vez, ficava com outro efeito. Ando a ler o João Ricardo Pedro e a tua história é reminiscente do livro dele.

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  5. A reconstrução do aforismo é muito boa e a parte final contém rasgos inimitáveis e documentáveis.

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