domingo, 31 de janeiro de 2016

Dos mercados

Padeço daquilo que os anglo-saxónicos chamam o professional hazard. Basicamente, a minha linha de negócio é a criação, e diria até, a alimentação, de mercados em ambiente de laboratório. Tipo tamagotchi. E, por isso, dedico mais tempo do que devia a pensar no que são realmente esses mercados: os que precisam de criação, e os espontâneos, nos quais os primeiros se tentam basear. Durante muito tempo, a minha maior surpresa tinha que ver com o generalizado desconhecimento que a maioria das pessoas parece exibir sobre o funcionamento dos mercados, inclusivamente dos mercados onde elas participam como compradoras ou vendedoras. Ultimamente, a minha questão é mais se esse mesmo desconhecimento não tem consequências no próprio funcionamento dos mercados (e não devia, por isso, ter consequências na maneira como os estudamos, para não acabarmos nós por ser aqueles que realmente os desconhecem profundamente). Mas, para economia de tempo, vou-me focar apenas no primeiro ponto.

Um exemplo que me tem sido próximo, em parte por ter uma casa em Lisboa e não saber ainda bem o que lhe fazer, é o do mercado imobiliário. Do que me é permitido observar, é extremamente comum que potenciais compradores façam chegar ao dono da casa não só o valor que propõem, mas também a descrição detalhada do porquê de lhe oferecer esse valor em concreto.  Há várias abordagens para essa descrição. A mais popular é a contabilística, que consiste em dotá-lo da detalhada soma aritmética dos custos que a pessoa em causa teria de incorrer para tornar a casa naquilo que ela quer. Outra, também popular, é da abordagem da salvação, que consiste em dar-lhe conhecimento de tudo aquilo que aquela pessoa, ao ao disponibilizar-se para lhe comprar a casa, o está a livrar de: já reparaste bem que a casa não tem elevador, ou garagem?; e a quantidade de turistas na ruas? Ui, um horror. 

Todos estes fatores, intrinsicamente subjetivos, ou são irrelevantes para o vendedor, ou jogam contra o comprador. Como vendedor, basicamente devia-me preocupar com duas coisas: encontrar a pessoa que está disposta a pagar mais pela minha casa, e saber quanto é que a segunda pessoa que mais quereria pagar pela casa está disposta a dar. Se eu for um bom vendedor, a primeira pessoa ficará com a casa, e pagará pelo menos o valor da segunda (e sim, tão próximo como possível do valor da primeira).

Ora, saber que um potencial comprador terá de incorrer em custos avultados para transformar a casa naquilo que ela quer, ou que acha terríveis certos detalhes da casa, o que me diz? Se eu acreditar nele, diz-me que é improvável que aquela pessoa seja a que tem maior valor para a minha casa, pelo que me tornará menos, e não mais, interessado em vender-lha. Se eu não acreditar nele, e ele for mesmo a pessoa que quer pagar mais, a informação que ele quer passar é-me irrelevante porque a premissa inicial é que eu não acredito nele. Por fim, se eu achar que aquela pessoa é, ou está próxima de ser, a segunda pessoa com maior valor para a casa, a informação pode ser-me útil como vendedor - mas a sua disponibilização é inútil para o potencial comprador. 

No entanto, estas práticas são muito comuns, pelo menos em Portugal. Os potenciais compradores fazem-no abundantemente, e os vendedores são influenciados por isso. O porquê seria então assunto para outro post.  

13 comentários:

  1. Venha daí esse segundo post, porque começou tão bem que alguns macroeconomistas vão lembrar-se de estudar melhor a microeconomia e precisamos que eles se actualizem.

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  2. "Como vendedor, basicamente devia-me preocupar com duas coisas: encontrar a pessoa que está disposta a pagar mais pela minha casa, e saber quanto é que a segunda pessoa que mais quereria pagar pela casa está disposta a dar. "

    Só e for na teoria, na prática tem de se preocupar com muitas outras coisas. Só assim de repente sem pensar muito na questão, devia preocupar-se com vários outros factores como:

    - a quantidade do seu tempo (horas/trabalho) que está disposto a despender na venda da sua casa;
    - o tempo que está disposto a esperar até encontrar um comprador para a sua casa.
    - a due diligence a fazer ao seu comprador nas várias fases do processo

    Estas decisões major depois irão implicar outras decisões como se está disposto a ter imobiliária e a suportar o custo ou faz a venda directa, o valor pedido e até onde é que está disposto a negociar, o tempo que está disposto a esperar até descer o preço, etc etc.

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    1. Rui, essas questões que referiu, e que são importantes, são todas elas inteiramente relativas ao primeiro dos pontos que referi - tentar encontrar a pessoa que está disposta a pagar mais pela casa. Devo contratar uma agência? Devo esperar muito tempo? Sei que, tudo o resto constante, se contratar profissionais, ou se esperar mais tempo, é mais provável que encontre a pessoa que mais quer pagar pela casa (que é uma figura de estilo, obviamente, dado que podemos pensar antes num grupo de pessoas cujas valorizações são as mais elevadas). A informação dada por um potencial comprador de que terá de incorrer em X milhares de euros em obras, ou que não gosta de determinados pormenores da casa, em nada o ajuda a conseguir obter a casa.

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  3. Caro Luís Gaspar, permita-me discordar.
    Em primeiro lugar a hipótese "tudo o resto constante" não existe na realidade. Por exemplo se decidir pedir um preço mais elevado pela sua casa e por esse motivo não atrair potenciais interessados, poderá estar a perder a hipótese de a vender por um preço mais elevado caso o mercado desça e perca a oportunidade para ajustar o valor.

    "que é uma figura de estilo, obviamente, dado que podemos pensar antes num grupo de pessoas cujas valorizações são as mais elevadas)" aqui também discordo pois o Luís apenas vai efetuar um negócio. Caso efetuasse múltiplos negócios aí sim poderia estar preocupado em encontrar o grupo de indivíduos que maximizasse o valor de venda para todas as receitas, no seu caso deveria efetivamente estar preocupado com o indivíduo que lhe oferece o valor máximo para o negocio.

    Por outro lado a informação dada por um potencial comprador no sentido de desvalorizar o valor da propriedade é uma estratégia típica de negociação. Caso as estratégias de negociação não fossem eficazes (o que não quer necessariamente dizer que sejam eficazes consigo....) provavelmente não existiriam tantas faculdades de gestão/economia com estas matérias nos seus curricula.

    Em suma, a ideia que pretendia passar é que é um erro (pelo menos na minha opinião...) tentar aplicar conceitos de análise macro, que estão necessariamente sujeitos a uma série de hipóteses, e à lógica dos grandes números e das suas distribuições a casos específicos micro que se regem por lógicas inteiramente diferentes.

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    1. Acho que não percebeu o meu ponto. Eu não falei em fixar, como vendedor, um preço demasiado alto - aliás, eu nem falei em fixar um preço como vendedor. Ao contrário, disse que o vendedor só se devia preocupar em encontar a pessoa que está disposta a pagar mais pela casa, e ter uma ideia de quanto a segunda pessoa estaria disposta a pagar. Mais nada.

      Por outro lado, quando falei no "grupo de pessoa cujas valorizações são as mais elevadas", estava a referir-me a que a pessoa pode não encontrar exatamente a pessoa que está disposta a pagar mais, por exemplo, se não contratar agências ou se não esperar o tempo suficiente, mas poderá encontrar alguém na classe de pessoas que estão dispostas a pagar mais, o que já será uma boa aproximação. Isto para dizer que, em termos de distribuição probabilística, podemos pensar no que eu estava a dizer (encontrar a pessoa que quer pagar mais e o valor da segunda pessoa que quer pagar mais) como classes de indivíduos, e não indivíduos concretos.

      Também não disse que a negociação não era importante. Também não discordo (aliás, até o disse) que a estratégia de desvaloriação não seja típica da negociação. No entanto, o que alego é que isso não devia resultar neste mercado concreto. O facto de ser muito utilizada é o tal tema para um segundo post, tal como referi logo no primeiro parágrafo).

      Finalmente, eu não sou de macro. Sou de micro.

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    2. Obrigado pela resposta. Que venha o próximo post. Cumprimentos.

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  4. https://en.m.wikipedia.org/wiki/Secretary_problem

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    1. Obrigado Pedro! Sem dúvida que esta é uma das possíveis explicações. No entanto, não deixa de ser também verdade que, se uma possível secretária vier à entrevista e colocar demasiadas reservas (por exemplo, mora demasiado longe do local de trabalho, por isso terá de incorrer em elevados custos de transporte, ou se referir que o ar condicionado do edifício não joga bem com ela porque ela tem problemas de saúde), o entrevistador ficará menos tentado, e não mais, a contratá-la.

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  5. O meu comentário saiu demaisado lacónico porque estava no smartphone e (devido ao "síndroma dos dedos gordos") apaguei a maior parte sem me dar conta antes de enviar... O que de facto eu queria dizer era o seguinte: independentemente da distribuição probabilística dos preços que os potenciais compradores possam estar disponíveis a pagar, do ponto de vista do comprador a estratégia mais favorável seria determinar à partida (como no problema da secretária) o esforço que se quer fazer (i.e. o número máximo (n) de candidatos/ofertas que se está disposto a avaliar). Seguidamente, Ir avaliando as as ofertas uma a uma, e rejeitar as primeiras n/e. A partir desse ponto aceitar a primeira oferta maior do que as apresentadas até à data.

    Em total concordância com o Luís Gaspar, os argumentos do comprador (custos de reconversão da casa, "desvantagens" do imóvel, etc.) são irrelevantes para a decisão do vendedor. Mas ao contrário do Luís gaspar, não acho que seja possível saber "qual o valor da segunda maior oferta" sem entrevistar todo o universo de compradores, o que é inexequível. E em concordânca com o Rui, o custo da procura, o tempo que se está disposto a esperar, etc., são factores que influenciam a escolha inicial de n.

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    1. Pedro, se me permite, não me parece que estejamos a discordar. Eu concordo que saber o valor da segunda melhor oferta é muito difícil, e que o fator tempo é importante. O ponto do meu post é que a informação sobre o valor das obras que o potencial comprador terá de fazer é irrelevante quer no que diz respeito à poupança do tempo do vendedor, quer para a aferiação do segundo valor mais alto. Saber que alguém gosta tão pouco da casa coloca o potencial comprador na base da pirâmide de valorizações, tornado-a portanto mais irrelevante.

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  6. "Pedro, se me permite, não me parece que estejamos a discordar."

    Eu não discordei do post, apenas tentei sugerir que a discussão acima ("encontrar o grupo de indivíduos que maximizasse o valor de venda para todas as receitas" vs. "estar preocupado com o indivíduo que lhe oferece o valor máximo para o negocio.") me parecia ser "hair-splitting" sobre um problema para o qual já existe uma solução matemática. Se eu estuvesse no twitter podia desculpar-me com o limite de 140 caracteres, mas neste caso só me posso culpar a mim por não ter sido claro.

    "Saber que alguém gosta tão pouco da casa coloca o potencial comprador na base da pirâmide de valorizações, tornado-a portanto mais irrelevante. "

    Claro que sim... Aliás, isso pareceu-me tão óbvio que nem pensei que não fosse "senso comum".

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    1. "Claro que sim... Aliás, isso pareceu-me tão óbvio que nem pensei que não fosse "senso comum"."

      Aparentemente, os potenciais compradores da minha casa não leram o memo ;)

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