quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Floricultura 50


O meu avô cultiva gladíolos.
De todas as cores, no jardim das traseiras da casa há gladíolos amarelos, roxos, vermelhos, brancos, laranja, cor-de-rosa. Durante algum tempo pensei que eram as únicas flores que existiam, porque não havia mesmo mais nenhuma outra flor no jardim, nem dentro de casa, e o meu avô nunca se tinha enganado nos bolbos que trazia e plantava. A primeira vez que vi uma flor diferente foi quando os meus avós receberam a visita de uma prima, que chegou com uma autêntica montanha, não, com uma indesmentível cordilheira de malas e um ramo de flores variadas. As malas indicavam que se ia instalar ali durante muito tempo. O ramo mostrava que não conhecia bem o meu avô. O meu tio, que estava em casa nessa ocasião, levou as malas para o quarto que tinha sido destinado à prima enquanto esta pedia um jarro com água onde colocar o ramo de flores. Para que não sequem, explicou. Estava ela a arranjar o ramo com ar entendido quando o meu avô entrou na sala. Viu-se que ficou incomodado, se calhar até mesmo zangado, por ter ali aquelas flores, que não eram gladíolos, e nem sequer se pareciam com gladíolos. Mas conteve a ira e cumprimentou a prima com o ar mais jovial que conseguiu, e não se pode dizer que fosse muito, mas também não era assim tão pouco. De qualquer modo, a prima não mostrou desconforto quando lhe apertou a mão, e se lhe viu algum trejeito menos simpático certamente o atribuiu a uma dor de dentes, ou de cabeça, ou a alguma notícia desagradável que ele tivesse lido no jornal da manhã. Mas nem lhe ocorreu que a contrariedade pudesse estar nas flores que tinha trazido, o que, nunca é demais dizer, mostrava que não conhecia bem o meu avô. Quando, mais tarde, nos sentámos todos à mesa para jantar, eu percebia o tremor leve com que ele agarrava o copo de vinho e os talheres, e percebia também os olhares furtivos que de vez em quando lançava ao jarro onde as intrusas tinham sido colocadas. Estava distraído, perdia o fio à conversa, esquecia-se da comida no prato, se lhe perguntavam alguma coisa tinha que pedir que repetissem a pergunta. Comecei a recear que estivesse pronto a explodir de fúria, mas eu conhecia o meu avô, sabia como era estóico e disciplinado, e o receio foi-se dissipando ao longo da refeição. Encheu-se-me o peito de orgulho com aquele exemplo de firmeza, e pensei que queria ser como ele quando fosse crescido. Tão perdido estava eu nestes sentimentos, nesta admiração das qualidades do meu avô, nesta adoração de um herói, que não reparei na faísca que lhe passou pelos olhos. Quando se levantou, depois de servido o café, julguei que iria manter-se firme. Não pensei que, para passarmos da mesa da sala para os sofás onde iríamos sentar-nos durante o resto do serão, tínhamos que passar pelo ramo das flores que a prima trouxera. De repente vi o meu avô a atirar as flores para o chão, esmagando-as como esmagam os gladiadores os seus inimigos. Nesse dia aprendi que não é só a moderação que ocupa o pódio das virtudes e que a cólera pode ser justa.

1 comentário:

  1. Esse AVÔ comportou-se como economista que já domina os "animal spirits" (emoções), roubados a um sábio que, na verdade, não era nada cartesiano. Como quem diz, e RMS disse que:
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    Para aqueles/as que propalam por aí que tenho mau-feitio, ora tomem!!! Línguas viperinas! Eh! Eh! Eh! Sim, porque eu pertenço ao 1.º grupo! :)
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    1.º Podemos distinguir duas espécies de cólera: uma que é muito súbita e se manifesta muito no exterior, mas mesmo assim tem pouco efeito e pode facilmente ser apaziguada; e outra que inicialmente não aparece tanto, porém corrói mais o coração e tem efeitos mais perigosos. Os que têm muita bondade e muito amor são mais sujeitos à primeira. Pois ela não provém de um ódio profundo, e sim de uma súbita aversão que os surpreende, porque, sendo levados a imaginar que as coisas devem desenrolar-se da forma como julgam ser a melhor, tão logo acontece de forma diferente; eles ficam admirados e frequentemente se ofendem com isso, mesmo que a coisa não os atinja pessoalmente, porque, tendo muita afeição, interessam-se por aqueles a quem amam, da mesma forma que por si mesmos. Assim, o que para outra pessoa seria apenas motivo de indignação é para eles um motivo de cólera. E como a inclinação que têm para amar faz que tenham muito calor e muito sangue no coração, a aversão que os surpreende não pode impelir para este tão pouca bílis que isso não cause inicialmente uma grande emoção no sangue. Mas tal emoção pouco dura, porque a força da surpresa não se prolonga e porque, tão logo percebem que o motivo que os contrariou não devia emocioná-los tanto, arrependem-se disso.

    2.º A outra espécie de cólera, em que predominam o ódio e a tristeza, não é tão aparente no início, a não ser talvez fazendo o rosto empalidecer. Mas pouco a pouco a sua força é aumentada pela agitação que um ardente desejo de vingar-se excita no sangue, que, estando misturado com a bílis que é impelida da parte inferior do fígado e do baço para o coração, excita nele um calor muito áspero e muito picante. E, assim como as almas mais generosas são as que sentem mais reconhecimento, assim as que têm mais orgulho, e que são mais baixas e mais fracas, são as que mais se deixam arrebatar por essa espécie de cólera; pois as injúrias parecem tanto maiores quanto mais o orgulho faz que nos estimemos; e também na medida em que mais estimamos os bens que elas arrebatam, os quais tanto mais estimamos quanto mais fraca e mais baixa tivermos a alma, porque eles dependem de outrem.
    ...»
    René Descartes, in 'As Paixões da Alma'

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