terça-feira, 21 de julho de 2015

O paradoxo do estatismo

A história não nos dá a solução para os problemas do presente, mas pode ajudar-nos a não cair nos velhos erros do passado. Hoje, conhecer a história do império romano pode ter alguma utilidade.
O Estado imperial romano foi uma máquina admirável, muito superior como artefacto ao velho Estado republicano das famílias patrícias. Todavia, mal chegou ao seu máximo desenvolvimento, começou a cair o corpo social. No século II, a sociedade começa a ser “escravizada” pelo Estado. A vida burocratiza-se. A burocratização da vida leva ao seu declínio. A riqueza diminui e as mulheres têm cada vez menos filhos. Como reacção, o Estado força ainda mais a burocratização da existência humana. A militarização da sociedade acentua-se. O aparato bélico torna-se a maior urgência do Estado, porque o Estado (convém não esquecer) é, antes de tudo, um produtor de segurança. A miséria aumenta, a fertilidade cai ainda mais. Começam a faltar soldados. Depois dos Severos (de origem africana), em meados do século III, começa-se a recrutar soldados estrangeiros.
Moral da história? O “estatismo” é um processo paradoxal e trágico. A sociedade, para viver melhor, cria, como um utensílio, o Estado. Com o tempo, o Estado sobrepõe-se à sociedade e esta começa a viver para o Estado. No fim, a sociedade fica faminta e o Estado esquelético.



10 comentários:

  1. Se me permite a indicação, provavelmente desnecessário porque certamente a conhecerá, Mises escreveu várias vezes sobre a estatização e o declínio da Roma clássica, que ele reconhecia como o principal factor que levou à queda do Império. A estatização consubstanciou-se, em absoluto, com Diocleciano, a partir, salvo erro, de 284, com a estatização definitiva de órgãos de soberania outrora autónomos, como o Senado, processo iniciado com Octávio e a fundação do principado.

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    1. Obrigado pela dica, por acaso nunca li os trabalhos do Mises que refere.

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  2. Caro JCA,

    Não sei se concordo com a sua análise. O estatismo não me parece que tenha sido (nem de perto, nem de longe) o motivo para o declínio do Império Romano do Ocidente (não convém esquecer o outro, que durou muito mais), mas antes uma corrupção a cada vez maior escala.

    A sociedade romana sempre foi, desde os primórdios da República, altamente permeável ao que hoje em dia considerariamos corrupção pública. O senado era um orgão politicamente fraco, sendo que, na realidade, o poder residia acima de tudo nos cargos executivos, nomeadamente nos cônsules. Estes, apesar de nominalmente eleitos com base no mérito, acabavam-no por o ser com base nas ligações políticas ou familiares (as familiares seriam mais importantes no início da república, quando os patrícios detinham mais poder) e no "apoio popular". Aliás, a transição atribulada dos tribunos como defensores da plebe para entidades demagogicas que procuravam o poder tem-se repetido ad nauseum através dos tempos (um ex-bastonário vem-me à ideia assim de repente).

    Com a instauração do império, essa tendência cristalizou-se à volta do Emperador, que se tornou no centro das pressões e distribuição de favores. No início, em que o poder era, de facto, muito centralizado, isso não era muito problemático mas, com o passar dos tempos e uma delegação de poder por cargos intermédios, os imperadores passaram a perder poder para os governadores nomeados por eles próprios, que se constituiram rivais internos.

    Adicionalmente, e em termos económicos, o Império Romano era puramente extractivo e não produtivo. Dependia essencialmente de trabalho escravo, tinha produção (que chamariamos de "industrial") muito baixa e vivia, de facto, dos sectores primário e terciário (sendo que o primário era assegurada por mão-de-obra "externa"). Essa situação era (e é, ainda hoje) insustentável e com a diminuição da entrada de mão-de-obra fresca (com a estabilização de fronteiras) tornou-se efectivamente um problema.

    A isto somaram-se os gastos cada vez maiores com uma classe de cidadãos dependentes do Estado (de onde surgiu, aliás, a expressão panis et circensis) e a burocratização da socidedade. Mas isso - e é aqui que discordo consigo - não foi um resultado da estatização, mas antes o resultado de um enfraquecimento político do poder central e a criação de uma cada vez maior e mais voraz rede de clientelismo político.

    Um contra-exemplo bastante bom de um estado burocrático mas que se provou muito resistente é o do império chinês e da sua criação - de uma forma muito superior ao império romano - de uma classe de burocratas públicos altamente eficiente e que foram, de facto, o sustentáculo efectivo do poder político. Só que ao contrário do império romano, o sistema chinês foi, durante muito tempo, muito resistente ao clientelismo.

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    1. Caro Carlos Duarte
      O seu comentário é bastante interessante - aliás, como sempre. Em grande parte, o seu argumento coincide com meu. Mas não fala de um ponto, a meu ver importante e decisivo, as despesas com o exército, que obrigavam à tal "extracção", como refere. O "enfraquecimento político" e do Estado, que antes havia sido de facto admirável, vem, a meu ver (e a minha análise, como é evidente, não tem nada de original) do enfraquecimento da sociedade pelo Estado, ou seja, a partir de determinada altura entra-se num ciclo vicioso. Tem razão, o exemplo do Império chinês (conheço mal, confesso) é bastante pertinente e foi mais resistente que o Império Romano, mas também chegou a um ponto em que entrou em decadência e, talvez a partir do século XVI, ficou definitivamente para trás em relação à Europa.

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    2. Esse declínio corresponde à decisão de destruir a frota marítima, certo? Penso que teriam uma frota com que Portugal, Espanha e o resto da Europa somadas nunca sonharam. Terá sido pelo século XV (inícios de XVI?) a decisão de não construir mais barcos nem reparar os já existentes.
      Parece uma decisão de que só agora a China começa a recuperar. Possivelmente, não fosse a vastidão da China e um erro tão clamoroso teria sido suficiente para destruir este país.

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    3. Conheço muito mal a história do império chinês, mas realmente esse facto, da destruição da frota marítima, costuma ser invocado. Contribuiu para o isolamento da China. Também já li uma análise interessante; o problema do "complexo de superioridade". Os chineses tiveram durante séculos motivos para se sentirem superiores ao resto do mundo. Só que isso é fatal. À semelhança das pessoas que sofrem dessa "perturbação", os países que sofrem desse problema acham que não podem aprender nada com os outros; pior, estar disposto a aprender com os outros, seria como admitir (para eles próprios, pelo menos) que afinal não são assim tão superiores. A prazo, isso é fatal não se evolui, estagna-se.

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    4. Lembro-me de há muitos anos ter lido uma crítica nazi a Bertolt Brecht. Já li essa crítica há muitos anos, pelo que não me recordo das palavras exactas mas o argumento era mais ou menos este. O problema era o facto de Brecht se deixar influenciar pelo Jazz. Ao se deixar influenciar pelo jazz, estava a admitir que os alemães tinham a aprender com os negros, o que era uma forma de negar a superioridade ariana. Era como se estivesse a dizer que a raça ariana teria a ganhar com umas injecções de sangue negro.

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    5. Essa está demais, mas faz todo o sentido dentro da lógica da autoproclamada superioridade dos nazis

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    6. Caro JCA,

      Não falei do exército, por lapso. Os custos de manutenção do exército têm muito a ver com a passagem de um exército de recrutamento para um exército de voluntários (profissional, portanto). É interessante que no séc. IV houve um regresso ao recrutamento por motivos económicos e resultado da crise económica que assolou o império.

      Mas o principal problema do exército foi a sua (excessiva) profissionalização e subsequente "escape" ao poder político. A organização "típica" do exército romano era de um exército de cidadãos (mais tarde auxiliado por tropas ligeiras recrutadas "estrangeiras"), liderado por cidadãos e ao serviço da República. No final do principado, isso já não era verdade: o exército, apesar de nominalmente constituído por cidadãos, era muito mais uma força "mercenária", em que os legionários tinham pouca ligação à "terra" (de lembrar que um dos atractivos de ser soldado romano era a atribuição de uma parcela de terra no final da comissão de serviço) e passaram a ter ao "soldo". A isto soma-se uma susbtituição das chefias civis por chefias militares, mas sem completamente separar os dois campos (que, salvo erro, aconteceu só com Constantino). Resultado: o exército passou a escolher os imperadores.

      Pegando nos paralelismos, é interessante notar que a maioria das democracias modernas proíbe a actividade política dos militares e subordina-os a autoridades civis intermédias (Ministérios da Defesa ou equivalente). Um caso de estudo igualmente interessante nesse aspecto é a Turquia, em que o actual governo (goste-se ou não) se viu obrigado a afastar compulsivamente os militares da política sob pena de ser deposto (e tentativas não faltaram).

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  3. A respeito do Império Chinês versus Império Romano, não sei se não terá havido muito de acaso aí.

    Imagine-se que em vez da sequência "os mongóis de Gengis Khan atacam as outras tribos da Ásia central - os mongóis conquistam as outras tribos da Ásia Central - as tribos da Ásia Central, lideradas pelos mongóis, conquistam a China" tínhamos tido "os mongóis de Gengis Khan atacam as outras tribos da Ásia central - as outras tribos fogem em retirada, em direção à China - com dezenas de tribos aguerridas a entrar no seu território, a China mergulha no caos, com cada general local a fazer alianças com a tribo A contra a tribo B - a China é transformada numa coleção de pequenos reinos, cada qual dominada por uma das tribos invasoras"; nesta altura estaríamos a falar das causas do declínio e queda do império chinês (por outro lado, talvez nem todos os reis da ex-China tivessem decidido destruir os barcos).

    Por outro lado, se Átila tivesse conseguido conquistar as outras tribos bárbaras e tivessem atacado o Império Romano em conjunto, se calhar a única coisa que teria havido seria uma mudança de governantes, mantendo-se a estrutura imperial a funcionar (e se calhar hoje em dia seriamos governados pelo Partido Espartaquista Romano - que a dada altura, apoiado nos camponeses e nos escravos, teria derrubado os imperadores e assumido o poder)

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