terça-feira, 12 de julho de 2016

História gótica


90. Uma torrente de retratos rasgados e pedaços de papel amarelado onde caligrafias diversas escreveram cartas caiu sobre Ada quando ela abriu a porta de um enorme armário encostado a uma das paredes mais sombrias do quarto.
Com a ajuda da criança, e acompanhada de Groesken e Valodu, subira até à torre norte do castelo, sempre pela escada secreta que da cozinha conduzia a todas as outras divisões. Tanto quanto sabia a criança, pelo menos, que experimentara já todos os percursos. Ou assim pensava, porque quando chegava a uma nova sala ou escaninho ou túnel sentia um desejo muito forte de que não fosse a última divisão que houvesse para descobrir. Na verdade, fazia questão de descobrir um gabinete, um estúdio, um aposento, uma saleta onde não tivesse estado ainda, para continuar a construir o seu mapa do castelo, um mapa infinito de um castelo infinito. Mas nos últimos tempos reparara que os salões e dependências se iam repetindo. Que passavam dias sem que chegasse a um sítio novo. Que os cheiros eram sempre os mesmos e as cores já  conhecidas. Os mesmos tapetes, as mesmas arcas, os mesmos castiçais. Amuou um bocadinho com o castelo, ameaçou não lhe completar o mapa se o castelo não deixasse que ela continuasse a subir e descer por dentro das paredes fazendo novas descobertas. Esteve até três dias seguidos sem sequer se aproximar da abertura na parede por onde costumava esgueirar-se para começar as suas explorações. Mas o amuo não durou muito tempo. A criança começou a pensar que talvez agora, depois destes dias de descanso, o castelo lhe permitisse continuar a acrescentar novos territórios à sua já extensa geografia. Que novas bifurcações se apresentassem em cada corredor, como costumava acontecer. Que cada sala desse para outra sala. Que cada alçapão revelasse um novo lanço de escadas e cada recanto escuro uma nova porta. Até os espelhos tinham sido passagens, mas agora parecia que apenas reflectiam, e quando a criança voltou à escadaria secreta era dos espelhos que esperava as melhores surpresas. Uma vez tinha atravessado um e do outro lado uma tartaruga olhou para ela com tanta mansidão que a criança se deitou sobre a carapaça quente e adormeceu ao sol, embalada pelos passos muito vagarosos do bicho. Outra vez fora também do outro lado de um espelho que se vira arrancada do chão por um turbilhão de algarismos e triângulos e círculos que lhe atravessavam a cabeça obrigando-o a calcular números astronómicos e a construir figuras impossíveis. Outro espelho despejou-a num rio de correntes fortíssimas e quase se afogou nos rápidos onde a água batendo nas pedras formava nuvens muito altas. Outro ainda causou-lhe uma constipação. Noutro viu-se amarela e muitas mãozinhas amarelas também acenaram-lhe do outro lado, e eram afinal vermelhas quando as seguiu e perguntou a si própria se estaria agora também toda vermelha como as mãozinhas, mas não tinha forma de verificar porque para isso precisaria de um espelho e os espelhos do castelo, nos dias bons como aquele estava a ser, não reflectiam, e olhar para um espelho era a mesma coisa que entrar num lugar diferente. E num lugar diferente, nada garantia que alguma coisa fosse a mesma do lugar anterior. Num lugar diferente poderia estar azul, pensou. Ou transparente. Num lugar diferente. Ada, Groesken e Valodu estavam de joelhos e procuravam no monte de papéis que se formara no chão aqueles que completariam o retrato rasgado e o fragmento de carta que cada um deles possuía e que eram os únicos sinais que tinham ficado dos desaparecidos.

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