sábado, 30 de julho de 2016

Sabor a Pokémon


Agora que se inicia a “silly season”, a recente febre da busca dos Pokémons é um valioso analisador do estado da nossa vida colectiva. Arrisco mesmo a dizer que este “desporto” é um interessante marco aplicável a diversas áreas.
De um prisma sociológico, crianças, jovens e adultos, de distintas proveniências sócio-culturais e económicas, saem de casa, facto assinalável no combate ao sedentarismo e à péssima forma de educar que assenta na televisão, videojogos e pouco ou nada favorece a interacção com os pares, excepto por via dos jogos “online”, que não permite a aquisição de competências relacionais essenciais numa altura precípua de formação da personalidade. Os mais velhos fazem quilómetros em busca de algo virtual, por vezes em hordas, o que necessariamente importa algum contacto com o outro. Não vou ao ponto de propor a Centeno um qualquer subsídio para este combate à sociedade do isolamento e do individualismo atroz. Longe de mim prejudicar o défice e a débil economia pátria…
Na verdade, a procura de algo que fisicamente não existe é marca d’água da economia hodierna, em que os “futuros”, os “activos tóxicos”, as acções e obrigações, os buracos na banca e a regulação financeira, “inter alia”, são verdadeiros Pokémons. Esta virtualidade é comparável à previsível “sanção zero”, por incumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Estamos no domínio do que efectivamente não existe: as normas parecem não ser para cumprir e a “engenharia jurídica” é uma construção, também virtual, em franco crescimento. Aí está um “cluster” à atenção das Universidades.
Vivemos no vazio e dele nos alimentamos. Conquistámos importantes títulos europeus e isso foi bem real. Daqui tentámos retirar um suplemento de alma, essa outra coisa virtual a que os Positivistas opunham a exigência de se conseguir colocá-la “na ponta de um bisturi”. A “geringonça” assenta, de igual modo, numa ficção de convergências à esquerda e a direita vive ainda o rescaldo de um Governo virtual de meses e que foi ultrapassado por um golpe democrático, constitucionalmente solúvel, mas que não deixa de fazer de Costa o grande usurpador. Marcelo vive na virtualidade real dos beijos e abraços, pacientemente aguardando pelo golpe de misericórdia, apenas possível quando Passos se afastar da liderança do PSD.
A realidade do terrorismo, essa, é bem real, infelizmente, e veio para ficar. Contra ela brandimos novas realidades virtuais, como a construção de muros, a ameaça da radicalização política e, bem vistas as coisas, não seria de todo inesperado que estes fossem os novos anos 30 da passada centúria, em que o cheiro a guerra à escala mundial está no ar. Falamos ainda de um Pokémon, mas este arrisca-se a marcar o resto das nossas vidas.
Internacionalmente, a farsa Trump é virtual: poderá existir assim uma “pessoa”? Tudo indica que sim e que a comunidade internacional ainda se não deu conta, em absoluto, das similitudes com o caldo económico-cultural pré-nazismo. Hillary cavalga a onda daqueles que, entre dois males, escolhem o “mal menor”. O que nos leva a um reforço da importância das religiões e do convívio com o transcendente, outra virtualidade. Refugiados do governo da “polis”, as pessoas conectam-se a algo superior, cientes de que viver em estado Pokémon não dura para sempre. Curiosos tempos estes em que a anunciada defunta espiritualidade se vem assumindo como último reduto da esperança. De novo, a circularidade da História, tão mal conhecida nos dias que correm. Doses maciças de conhecimento histórico contra a virtualidade parecem ser uma receita para um “acordai” ao jeito do genial Lopes-Graça.
Liquidificação dos tempos, relativismo, auto-justificação do injustificável, triunfo darwinista nas relações humanas. Realidades que tantos se esforçam por transformar em Pokémons, mas a que a Arte, aqui e além, quando não escrava de subsídios estatais, vai sinalizando, ironicamente, como imprestáveis para a felicidade humana. Há, no Porto, uma instalação muito feliz, que envolve a esplanada de um bar de redes com arame farpado, alegoria perfeita da colectividade universal, entalada entre divergados pólos e em busca de uma saída, ainda que esta seja uma diminuta bala cravada nas cercas.
A solidão da sociedade da técnica e do desenvolvimento limpo desafia Quioto e outras tentativas de comiseração humana. De novo assome o Pokémon da discursividade “amiga do ambiente”, outra grande busca que encomendamos aos amigos que, de calções e t-shirts, andam em busca do sonho.
“É pelo sonho que vamos” e é mesmo urgente sonhar. Acordado, de preferência. O próximo ano pós-férias estivais adivinha-se de complexidade acrescida, mas a sorte é termos os Pokémons, esses seres míticos e simpáticos, que repousam em lugares mundanos e sagrados (parece que muitos escolheram Fátima para um retiro espiritual, talvez guardando já lugar para a comemoração centenária do próximo ano, em comunhão com um inefável Francisco que, de tão positivamente desconcertante, arrisca também o estatuto de Pokémon).
Vamos, pois, de férias. Merecidas, na maior parte dos casos. E levemos os Pokémons. Ser-nos-ão muito úteis quando voltarmos a um Setembro virtualmente real!

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