sexta-feira, 8 de julho de 2016

História gótica

89. Iniciou a subida, sempre arrastando a mala. As peças com que montava pássaros mecânicos capazes de abrir as asas, ou jogadores de xadrez invencíveis, serviam muitos propósitos.
Podia ser necessário montar um revólver ou uma carabina. Lembrou-se de um livro que lera na infância acerca de um branco criado por índios que nunca falhava um tiro. Ainda assim não pudera salvar os seus irmãos nativos, e viu morrer o último dos moicanos às mãos dos homens de outra tribo, vendida aos exércitos europeus. Lembrou-se também das máquinas inventadas que podiam vir a existir no futuro, Náutilo, veículos com feitio de charuto para ir além da atmosfera terrestre, naves para chegar ao centro da terra. Talvez viesse a precisar de um balão, não porque fosse dar a volta ao mundo, mas porque, enfim, fugir daquele lugar seria como dar a volta ao mundo, afinal poderia precisar de um balão que desse a volta ao mundo. Como gostaria de estar a comer ovos cozidos ao cronómetro, ou a beber xerez num clube. Pécuvard era um homem de conforto e da volta ao mundo apreciava mais os prazeres do que os perigos. O que significa que para ele o perigo não era um prazer. E isto explica o nó no estômago com que ia subindo a colina e com que se embrenhava na floresta. Quase dava um salto de cada vez que ouvia ranger um ramo ou cair uma bolota. As folhas secas que lhe caíam nos ombros quase o faziam perder os sentidos. Suspendia-se-lhe o fôlego de cada vez que um vento lhe abria o casaco. Apesar disto, avançava. Mas nem se presumia corajoso por vencer deste modo o medo, na sua cabeça não havia um único juízo. Só as sensações do susto e do alívio. E a impressão de uma necessidade que o puxava colina acima. Pensou nos cavalos que arrastavam homens presos por um laço, uma forma da justiça do velho oeste. A morte não era garantida, mas tanto mais provável quanto era acidentado o terreno, veloz o galope e longa a cavalgada. Grupos de homens de má cara levantavam o pó das ruas de Tombstone ou Deadwood ou Gulch City e assaltavam bancos, de cara tapada com lenços e chapéus de aba larga enterrados na cabeça. Heróis e bandidos enfrentavam-se em duelos e tornavam prósperas as funerárias. Ou melhor, diga-se a verdade, rufias que se ofenderam nos saloons, movidos a álcool de má qualidade e jogos de póquer, marcavam encontros fatais ao pôr-do-sol enquanto cuspiam tabaco ou arrancavam com um tiro o chapéu da cabeça do pianista. Um bêbedo nem sempre acerta, claro, e de pianistas estava também cheio o cemitério. Pécuvard passou o lenço pela testa suada agradecendo à sua imaginação saltitante esta ajuda que lhe trazia para dentro da cabeça os pensamentos que o pavor expulsava. E deixava-se invadir por tâmaras e oásis e camelos atravessando o deserto. Por miragens. Por danças do ventre, véus e tapetes voadores. Pareceu-lhe que passava em frente dos seus olhos uma fada, um sátiro. Ou que homens loiros ferozes desembarcavam de drakares para violar freiras, pilhar cidades, devastar aldeias. Viu azeite fervente ser lançado do alto de muralhas e homens armados de escudos e lanças lutando em planícies. Pensou nas armadilhas, estratégias e sorte que decidem as batalhas. Nas catedrais e nos venenos. No General Inverno que derrota imperadores. Em dragões trespassados por espadas. Em aventuras no mar e sereias e remoinhos. Valeu a Pécuvard nesta subida ter tantas ou mais coisas dentro da sua cabeça quantas as que tinha dentro da sua mala.

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