segunda-feira, 18 de julho de 2016

História gótica


93. Falso Dimitri, assim era conhecido o corcunda. Foi escolhido entre os feios e desgraçados para se juntar aos serviçais do castelo negro impossivelmente equilibrado no alto de uma escarpa.
Ajustou-se de imediato, foi assimilado, tornou-se parte do grande organismo que o escolhera. Passou a ser uma célula, um órgão, um músculo. Percorria os corredores como o sangue corre nas veias. Cumpria as suas tarefas como os animais expulsam excrementos. Esfregava as mãos e baixava a cabeça com o prazer daqueles que nasceram para a obediência. E não havia nada a que não obedecesse. Nenhuma ordem era excessiva. Nenhuma estava para além do seu zelo. Nenhuma excedia as suas capacidades. Porque como escravo daqueles senhores descobrira em si uma força de que nunca tivera sequer sinal nas cidades onde sobrevivia a custo. Uma vontade absoluta de acolhimento de um horror absoluto. A vontade absoluta de acolhimento dO horror absoluto. Era tão parte do castelo que quase não precisava de falar para que os outros serviçais o compreendessem e agissem. Com excepção dos criados da cozinha, gente estranha, sem amor, sem lealdade aos que mandavam, todos os serviçais eram uma extensão sua, todos pertenciam a um contínuo onde se individuavam por meio de figuras que desapareceriam um dia, o dia prometido da dissolução final, da totalidade que devora as coisas particulares. Não era só a sua subserviência que fazia dele o escravo certo. Era também a sua corcunda, a sua forma de monstro que assustava as senhoras e despertava nos rapazes instintos de crueldade. Quantas vezes não fora perseguido por hordas de crianças gritando insultos e atirando pedras. Quantas vezes não o tinham sovado. Quantas vezes não tinha uma multidão álacre posto na sua cabeça uma coroa de papel declarando-o rei dos monstros. Das aberrações, das coisas, dos dejectos de um qualquer deus perverso. Não deixara de ser um monstro ao entrar no castelo, mas era exactamente por ser um monstro que nele se integrava de um modo tão perfeito. O imperfeito que encaixa no imperfeito é uma forma de perfeição ou de imperfeição, não sabemos, isto é um mistério, um enigma. Tão aterrador que nunca será resolvido. Uma resposta seria algo que não pode ser pensado. Um nada, um buraco negro, uma negação não chegam sequer perto dessa, desse, daquilo que não podemos nomear. O inominável, o impensável, o não, são evasões desonestas, truques risíveis, como risíveis são os esforços daqueles que dizem ter chegado a ele através do paradoxo. Um não impotente, ainda que seja um justo não. Um não que receberá um dia o seu castigo, os justos nãos recebem sempre o seu castigo. Mas voltemos ao corcunda, à mão que executa. Falso Dimitri.Tinha encontrado o seu lugar natural.

1 comentário:

  1. Bom retrato da subserviência. Às vezes é preciso fazer um curso para aprender a enfrentá-la...

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