quarta-feira, 13 de julho de 2016

História gótica


91. "Ladrão! Ladrão! Alguém me valha!"
Quem gritava assim era uma mulher de meia-idade, vestida de preto, e com aquele ar insalubre de quem passa grande parte dos dias a respirar o fumo das velas e dos incensórios. "Bandido, celerado, salafrário!" O transtorno da mulher era tal que os transeuntes paravam a fitá-la em vez de olharem na direcção em que o dedo dela apontava. Se olhassem, veriam a figura inconfundível de um corcunda correndo com grande velocidade e agarrando uma malinha preta de croché. "Ai os meus santinhos!", uivava a beata. "Que ficam sem a esmola!" E pela cabeça da mulher passaram imagens de homens emaciados,  rodeados de auréolas douradas e convertendo índios, ensinando o catecismo aos pagãos. Como iriam agora aqueles mártires enfrentar os perigos dos antropófagos dos mais remotos cantos do mundo sem a esmola que ela todas as semanas depositava, angustiava-se. Como iriam espalhar a boa nova e levar a palavra aos pretinhos. No espírito dela, as poucas moedas que deixava na caixa de esmolas eram suficientemente valiosas para fazerem diferença no trabalho missionário. Porque os homens de deus são modestos e do pouco fazem muito, como Jesus que multiplicou os pães e da água fez vinho. Não se lembrava bem se também multiplicara peixe, e transformar água em vinho não lhe pareceu uma ideia assim tão louvável, os selvagens tomados pelo álcool podiam voltar aos seus ídolos e às suas poucas vergonhas, mas Jesus lá saberia o que estava a fazer. Ainda assim, dava-lhe uma palavrinha meio zangada sempre que punha as moedas junto aos pés sangrentos do filho, perdão, do Filho. E pelo meio do ralhete pedia-lhe que pensasse melhor e que transformasse a água noutra bebida qualquer. Ou que não a transformasse de todo, ela até gostava de beber o seu copo de água em dias quentes, e o mais que devia ter feito o filho, perdão, o Filho, era ter transformado a água em chá. Um cházinho caía sempre bem. Mas pensando melhor, transformar água em chá não era grande transformação. Afinal, ela fazia isso todas as tardes, e não se pensava que operasse um milagre. Fosse como fosse, a ideia de substituir o álcool que colocava os homens no caminho  da perdição por um chá inocente continuava a parecer-lhe mais sensata. Até porque enquanto bebia o chá costumava agradecer a deus e aos santos os dons com que preparava o lanche, porque um chá devia sempre ser acompanhado de um agradecimento ao pai, perdão, ao Pai, e de uma fatia de bolo ou de um pão com manteiga e marmelada, em vez de agradecer a um tio-avô somítico a herança de que fora a única beneficiária e que lhe permitia viver de forma tão devota. Herdara do tio-avô não apenas um pecúlio satisfatório e uma casa, mas também os hábitos de avarento, e a esmola era uma das poucas despesas que se permitia. Tinha aperfeiçoado a arte de conseguir das vizinhas taças de compotas ou saquinhos de laranja cristalizada sem dar nada em troca, e por isso não sentia a sua gula vespertina como o pecado mortal que lhe tinham dito que era. Se alguém violava os mandamentos do senhor eram as vizinhas, essas perdidas, que enchiam os filhos de chocolates e compravam bifes altos para os maridos. E a roupa que estendiam à janela, era só rendas e sedas e peças que ela nem sabia como se vestiam, uma indecência, uma afronta. Como era uma afronta agora este gatuno arrancar-lhe das mãos a malinha preta, não apenas porque lhe levara o pecúlio para as esmolas, mas porque lhe rapinara também a sua única mala. Corria o risco de ter que entrar em despesas.

2 comentários:

  1. Li este trecho como se estivesse olhar para uma pintura realista. O que a velha não diria se apenas lhe tivessem roubado o terço… Será que cancelaria alguma cerimónia, ficando sem saber que fazer ao tempo disponível?

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  2. Se lhe roubassem o terço, lá ia ela ter que se meter em mais despesas. Imagino que faria como já faz com o açúcar: pedia emprestado às vizinhas. Não me parece que ficasse sem saber o que fazer ao tempo: um terço emprestado é tão bom como um terço próprio; e pedi-lo emprestado leva tempo. :-)

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