terça-feira, 26 de julho de 2016

A execução orçamental

Saiu a apreciação da execução orçamental do primeiro semestre do ano. Dizem as notícias que há números para "todos os gostos", mas acho que os jornalistas gostam de exagerar. O desempenho das receitas surpreende pela positiva, mas o que surpreende mais é a evolução dos tipos de impostos.

As receitas dos impostos de vício -- tabaco e álcool -- aumentaram 52,9% e 9,2%, quando o orçamentado era apenas de 28% e 2,2%. A receita do imposto de selo aumentou 50,2%, em vez de 2,8%. Não percebo qual a dificuldade em estimar o impacto do aumento destes impostos, especialmente do tabaco e do álcool. Ou o governo se enganou no cálculo da estimativa de propósito ou, num trimestre, os portugueses mudaram radicalmente o seu comportamento para pior, fumando e bebendo mais (estes impostos foram introduzidos em Abril). Esperemos que tal não indique um aumento do stress, depressão, ansiedade, etc., pois isso irá reflectir-se num aumento das despesas de saúde eventualmente e em pior produtividade no trabalho.

O aumento das receitas do imposto de selo também não faz grande sentido. Este imposto incide sobre coisas como uso de crédito, jogos de sorte (outro vício), operações por instituições financeiras, contratos de arrendamento, aquisição de imóveis, etc. Na maior parte dos casos, há algo na economia real que dá origem ao imposto. Por exemplo, se os portugueses usam mais o crédito o que é que compram com o mesmo, pois essas compras aumentariam as receitas de outros impostos, como IVA ou IRC. Se há mais transferências bancárias que não aparecem nas métricas da economia real, então uma explicação é que há mais fuga aos impostos ou os portugueses contraem novas dívidas para pagar dívidas antigas. Outra explicação possível para o aumento das receitas do imposto de selo sem que se veja nada de significativo na economia real, é os portugueses jogarem mais em jogos de sorte.

Para medir o progresso da economia, podemos olhar para os impostos que estão correlacionados com consumo, produção e venda de bens e serviços, e salários. Tanto o IRS, como o IRC, e como o IVA tiveram evoluções negativas, ou seja, compra-se menos do que o governo esperava, os salários não evoluíram tão bem, e as empresas têm menos lucros do que o esperado. Há várias explicações: ou os portugueses conseguem fugir melhor ao fisco, ou o nível de actividade económica, emprego, e consumo está pior, ou uma outra explicação possível é haver um desfazamento temporal ou um efeito sazonal, em que as pessoas compram mais bens e serviços na segunda metade do ano, em vez da primeira.

A contenção da despesa parece ser uma vitória conseguida por este governo, mas acho muito cedo para deitar foguetes. Por um lado, na segunda metade do ano [correcção: em 2017], haverá eleições autárquicas e, como é tradição em Portugal, o governo irá gastar dinheiro a comprar votos, logo não vale a pena estar a gastar dinheiro tão antes das eleições porque as pessoas precisam é de ser subornadas perto da véspera do voto. E o governo tem um grande incentivo para comprar votos: há a possibilidade de os resultados das próximas eleições permitirem ao governo antecipar eleições legislativas, pois o PS não tem nada a perder: se o PSD tiver mais votos, o PS pseudo-coliga-se com a Extrema Esquerda e tudo fica na mesma; se o PS tiver mais votos do que o PSD, não precisa de pseudo-coligação.

Por outro lado, o primeiro trimestre deste ano ainda era do OE do governo anterior, logo este governo tem também um incentivo para estagnar a economia pois pode colocar as culpas no plano económico do governo anterior. Quanto mais fraco o início da governação, maior o crescimento que pode acontecer na segunda parte do ano, dando credibilidade a esta governação, e também em 2017. Não se esqueçam que para fazer uma coisa crescer, é tão válido aumentar o numerador, como controlar o denominador.

Basta analisar a evolução da despesa para ver que o governo não quer que o PIB aumente: manteve os salários (precisa dos votos), mas reduziu a aquisição de bens e serviços (-2,1%), as transferências correntes (-5,4%), o investimento público (reduzido 20% quando planeava um aumento anual de 12%), e as despesas com o desemprego (-15%). Já as despesas com as pensões aumentaram 2,8%, em vez dos 3,2% (não ter algum aumento também iria afectar os votos).

Os meu conterrâneos mais optimistas dirão que a despesa foi contida porque a receita não evoluiu como se esperava, só que este argumento tem uma grande falha: contemporaneidade. A despesa e a receita do orçamento são duas variáveis contemporâneas, i.e., evoluem ao mesmo tempo. Não havia maneira de saber qual a evolução da receita quando se decidiu cortar na despesa. Como a decisão de conter a despesa foi feita antes de se saber a evolução da receita, concluímos que, ou o governo sabia que a sua governação não ia gerar receita, ou reduziu a despesa do primeiro semestre independentemente da evolução da receita.

19 comentários:

  1. Em relação o imposto de selo os bancos reagiram às baixas taxas de juro tornam inviável rentabilizar depósitos através de spreads sobre taxas de juro introduzindo e aumentando significativamente toda a espécie de comissões até agora inexistentes ou muito baixas em Portugal.

    Não sei se é suficiente para explicar o imposto de selo.

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    1. Pois, eu também não percebo muito bem de onde poderá vir, mas dá-me impressão que não se traduz em nada de concreto ou positivo para a economia real.

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  2. As eleições autárquicas são apenas no próximo ano

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    1. Obrigada pela correcção. Foi falha minha, porque eu até fui ver o calendário...

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  3. "Por um lado, na segunda metade do ano, haverá eleições autárquicas e, como é tradição em Portugal, o governo irá gastar dinheiro a comprar votos,"

    Na segunda metade do próximo ano.

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    1. Às vezes, sou um bocado distraída porque até fui ao calendário e não processei bem 2017...

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  4. Relativamente ao Imposto de Selo uma alteração significativa que poderá explicar (pelo menos em parte, o aumento desta receita do Estado é o facto do OE2016 estipular que suprimentos de sócios com participações inferiores a 10% passam a pagar este imposto.
    http://www.jornaldenegocios.pt/economia/impostos/detalhe/suprimentos_de_socios_com_participacoes_abaixo_de_10_pagam_imposto.html

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  5. Cara comentadora Aurélia Santos
    Se quiser moderar um pouco a sua linguagem, os seus comentários serão publicados. Caso contrário não ponha cá os pés.
    Faço este aviso porque o seu comentário tinha coisas interessantes, por exemplo o aviso à Rita de que as autárquicas serão só em 2017 e não na segunda metade de 2016, senão nem perdia tempo. Modere-se e verá que isto é bem mais interessante.

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  6. Rita, boa análise do lado da receita. Do lado da despesa acho que estás a assumir um controlo que o governo (este ou qualquer outro) no horizonte temporal em questão não tem. Poderia ter no caso do investimento se decidisse cancelar contratos, mas não me parece que seja essa a razão.

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    1. Obrigada, Fernando, mas continuo a não perceber como é que certos encargos, como despesas de desemprego, diminuíram sem que houvesse aumento de emprego. Haveria assim tanto potencial para cortar no desperdício?

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    2. Penso que estão a travar a fundo nas "medidas activas de emprego" (mas não sei se já se vê).

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    3. Há uma teoria de que se está simplesmente a adiar os pagamentos aos fornecedores.

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    4. Não é teoria, é a pura realidade. É que a contabilidade do Estado português ainda é de merceeiro, e a despesa só conta quando é efectivamente paga e não quando é facturada. Há indicadores sintomáticos dos atrasos nos pagamentos do Estado aos fornecedores. Em jargão, chama-se a isso "cativação".

      Nota: O João Galamba poderia, perfeitamente, ter sido o autor deste post.

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    5. Correcção: quando falei no autor deste post, fiz confusão: estava a pensar no post sobre a não-aplicação de sanções. As minhas desculpas.

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  7. "continuo a não perceber como é que certos encargos, como despesas de desemprego, diminuíram sem que houvesse aumento de emprego"

    Rita, não te esqueças que os desempregados só têm direito a subsídio de desemprego durante 18 meses após serem despedidos. Depois deixam de ter. Além disso, aqueles que não têm emprego em Portugal e que beneficiariam do subsídio e que decidem emigrar também reduzem a despesa.

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  8. Frustração total no DDD. Nada decorre conforme previsto. Orçamento sob controle, melhoria dos indicadores de confiança, instituições europeias a tratar Portugal como gente, onde é que isto irá parar...

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    1. Caro NG, enganou-se: este orçamento é uma grande vitória pessoal. Tenho pena de Portugal, mas eu avisei.

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  9. Relativamente ao Imposto do Selo faço notar que neste OE foi introduzida (tecnicamente acabou uma isenção) a cobrança do IE nas transacções em terminais de pagamento automático (a suportar pelo comerciante) bem como em outras transacções bancárias e interbancarias. Não sei se o respectivo contributo terá tido expressão que possa justificar o mistério...

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