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quarta-feira, 27 de abril de 2016
História gótica
46. Disse ao meu cavalo, avança, mais um passo e encontramos água.
Falo com ele, pois. A estepe é despovoada de gente, só posso falar com animais, destes há alguns, desconfio até que há muitos mas não se mostram. E de falar com milhafres e toupeiras sei sobre eles mais do que sobre mim próprio, porque sobre mim próprio foi o que vim aprender e só saberei no fim, ou no regresso. Os animais sabem tudo sobre o que são, comunicam melhor do que nós. Também se enganam uns aos outros, disfarçam-se, fingem, fazem emboscadas. Não querem ser conhecidos uns pelos outros e muito menos por mim. Sou de uma espécie que entendem mal. Por isso espreitam-me à noite, vejo olhos, cintilam, contra o escuro. Há muitos brilhos na estepe à noite, estrelas, lua, animais. Reparo mais neles porque já se esgotaram as memórias da minha existência anterior, rodeado de gente numa tenda redonda. Esgotaram-se quero dizer, pensei nelas muito, nos primeiros meses desta viagem que não sei quanto tempo mais vai durar porque não sei onde acaba, e agora gosto mais de olhar para fora do que de fechar os olhos. Quase não penso. Ando há meses, sim, em direcção às montanhas e seguido por lobos. Como eles, deixo um rasto de sangue e ossos à minha passagem. Já só faz sentido para mim esta vida dos predadores e das presas, sou um predador, não me deixo caçar, caço. Ainda há coisas que parecem distinguir-me, o fogo, o cavalo que me transporta, a roupa, os punhais. Poderia pensar-se que são sinais da minha humanidade, mas só se por humanidade se entender uma forma, mais uma forma, de ser feroz. O fogo destrói os poucos ramos dos arbustos que têm sobrevivido a custo, o cavalo é um cativo, a roupa arranco-a de corpos às vezes ainda vivos, as facas, não é preciso dizer nada acerca das facas. Sou violento como o que me rodeia, e como o que me rodeava sem que eu me apercebesse porque quando à noite bebemos e contamos histórias parece que fazemos mais, ou outra coisa, do que sobreviver pela força. O meu cavalo morreu entretanto, de cansaço ou solidão não sei, vi ao afastar-me abutres, não há tempo para cerimónias, não sentimos falta de ninguém, nós, eu e os outros animais. Chego a pé à base das montanhas. Subo-as. Olho para o que está do outro lado. Uma paisagem estranha, uma cidade, à qual chego à noite e por cujas ruas estreitas vagueio. É mais fácil sobreviver nos lugares selvagens do que aqui, porque aqui não se pode caçar. As presas estão fechadas nos currais, ou já estão mortas e são guardadas nas casas. Mas nem todas. Os homens são capazes de abrir portas e sair, têm livre-arbítrio. Espero por eles nas vielas à noite, no melhor sítio e na melhor altura. Ataco a jugular e não lhes dou tempo de lançarem um grito sequer. Devoro-os. São mais gordos e mais moles do que as lebres da estepe. Mas o sabor não é tão bom, excepto numa coisa, gosto do sangue dos homens. De dia ouço-os quando descobrem os restos, horrorizados. Sei que estão a organizar-se para me destruir. E sei que vão destruir-me de forma muito mais cruel do que eu os destruo a eles. Têm instrumentos e não têm pressa. Não matam por causa da fome. Querem saciar uma paixão que não existe entre os animais, ou que eu nunca vi que existisse, a paixão da vingança, outra coisa que nos distingue e que nos torna muito mais brutais, muito mais inventivos, na destruição. E assistem em massa às suas obras-primas impiedosas. Não sabem o que é a repugnância. Quando me capturaram, arrastaram-me pelas ruas preso em ferros, com um martelo quebraram-me os ossos, os meus intestinos foram lentamente arrancados com uma roldana que os enrolava fora do meu ventre. Não gritei. Gritaram eles, acho que gritaram insultos e maldições, mas eu já não reconheço sons que os animais não fazem, eles não insultam, não amaldiçoam. Esperavam todos que me consumisse em chamas, a fogueira é o ponto alto desta justiça. Mas não contaram com os espíritos que presidiram ao meu nascimento e me acompanham desde então. Têm um propósito para mim, isto garantiu-me a minha avó, que esperava, sem muita confiança, que fosse um propósito bom. Ainda a última brasa não se tinha apagado e já eu olhava com olhos implacáveis para aqueles no seio dos quais semearia a devastação. Eu, Nergüi, subi aos céus.
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