sexta-feira, 29 de abril de 2016

História gótica


49. O terror não é um grito.
Não dura um instante. Não passa. Instala-se. Ver e pensar enforcam-se num nó do qual se espera que aperte, sustentam-se num cadafalso que se abrirá debaixo dos pés. Antecipa-se a faca enterrada nas costas, o veneno no alimento, o chicote. Imaginemos um poço escuro e um pêndulo, e o pêndulo é uma lâmina que se aproxima a cada passagem sobre as nossas cabeças, e no fundo de um poço não podemos fugir, e na escuridão não sabemos quando virá o primeiro golpe, e o segundo, e os outros. Imaginemos corpos podres saindo à noite das paredes do nosso quarto, e o que é tentar dormir depois de vê-los, o que é não saber o que querem, quando regressam, quando recuam, se nos contaminam com a sua podridão. Imaginemos o que é não confiarmos na nossa própria casa. Imaginemos que ela não é afinal nossa, que é uma armadilha de espectros arrastando vísceras, sujando de sangue o chão por onde passam, e que esse sangue é pó quando nos aproximamos e volta a ser sangue quando o olhamos de longe. Imaginemos assassinos atrás de cada porta. Imaginemos a morte lenta nas areias movediças. Imaginemos tudo isto e não chegaremos à natureza do terror, de que estes pesadelos são exemplos pálidos. E foi o terror que se apoderou do artista no seu estúdio ao ser forçado por um espírito rodeado de outros espíritos a pintar um retrato. Nergüi aprendeu ao sair do seu corpo que não voltaria a ter um. Mas aprendeu também que aos espíritos da sua ordem é permitido habitar um pedaço de matéria. Deram-lhe a escolher uma arca no porão de um navio, a espada de um general, o sermão de um padre na missa. Preferiu um retrato. Porque era uma forma de celebrar o corpo que o transportara da estepe à montanha, que o servira com os seus prazeres, que ardera assumindo crimes que não eram só dele. Porque estaria presente sem dúvidas acerca de quem era e de quem tinha sido. O retrato pronto, foi emoldurado em talha dourada. Tirou a própria vida o pintor assim que o expediu num barco, infestado de ratos que o abandonaram preferindo mergulhar nas águas geladas a permanecer junto do volume transportado. Nosferatu fizera-se transportar assim em direcção à grande cidade nas margens do Tamisa, e ninguém sobreviveu a essa viagem. Nergüi fez-se transportar assim até à costa mais próxima de Zselyk, e ninguém sobreviveu a essa viagem. O Confessor esperava no cais a chegada do barco fantasma. No salão do castelo reuniram-se todos para a cerimónia na qual o quadro foi desvendado. Uivaram " bem-vindo!".

3 comentários:

  1. Agora fizeste-me tão feliz. Reparei que criaste uma etiqueta para a "História Gótica". Mesmo ontem tinha pensado que a minha leitura da HG estava em atraso e precisava de uma estratégia para voltar a ler tudo em sequência. Beijinhos -- és a maior!

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    1. :-) Sim, sugeriram-me aqui a etiqueta. Até para mim é melhor, sei mais facilmente em que ponto vou. Beijinhos!

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