quarta-feira, 20 de abril de 2016

História Gótica

37. A Condessa de Ecsed, seguida pelo corcunda que transportava a cabeça escolhida numa bandeja de prata e pelo Confessor, abandonou a galeria.
Não olhara para mais nenhuma das dezenas de cabeças perfeitamente alinhadas ao longo das paredes. Não parecia ter em relação a elas nem o interesse mórbido do sádico nem a satisfação infantil do coleccionador. Encontrara o que queria, era quanto bastava. Achavam-se agora os três na base de uma escadaria imponente, que começaram a subir. Os gritos que costumavam ecoar por todo o castelo iam-se tornando mais definidos e a sua origem mais precisa, ao mesmo tempo que a escadaria, continuando para além de dois andares sumptuosos e iluminados, se ia tornando mais estreita e mais escura. O Confessor tomava agora a dianteira. Tinham iniciado a subida a uma das torres do castelo e os gritos estavam cada vez mais próximos. Já quase era impossível ouvir a respiração ofegante do corcunda. A Condessa seguia sem esforço, não se cansam nem hesitam aqueles que estão habituados a dobrar o mundo à sua vontade. A escada terminou abruptamente num patamar de cor estranha, e outras pessoas que não estas três teriam tido dificuldade em suportar o cheiro fétido que poluía o ar. Com a mão livre, o corcunda abriu a porta que dava para uma sala de tecto alto e janelas estreitas. Lá dentro, sobre dezenas de estrados encostados às paredes, jaziam criaturas informes e que pareciam estar em grande sofrimento. Os gritos do castelo eram amplificações e ecos dos gemidos destes infelizes indefinidos, pedaços de carne ensanguentada e atravessada por costuras negras. As enxergas onde estavam deitadas estas figuras lamentosas eram negras também, mas de um negro irregular, mais negras nuns pontos e menos noutros, noutros ainda parecendo terem acabado de ser vermelhas. Algumas tinham manchas amarelas e esverdeadas misturadas com o negro. Todas tinham cheiros repugnantes. "Amanhã aquelas quatro têm que vir cá acima," disse o corcunda, aflito como uma dona de casa que recebe visitas. O Confessor calou-o com um gesto. Na parede oposta àquela onde estava a porta por onde tinham entrado, via-se um estrado mais alto do que os outros. O que quer que fosse que estava em cima dele, não se mexia e não fazia qualquer ruído. Mas para além desta imobilidade, não parecia ser muito diferente daquilo que ocupava os outros estrados. Pedaços de carne que faziam lembrar membros e partes de corpos humanos cosidos com uma linha preta. Mas só individualmente considerados, depois de alguma atenção, tinham os pedaços de carne qualquer semelhança com um corpo humano, ou com o corpo de qualquer animal conhecido, real ou mitológico. Um braço que parecia um braço estava cosido a uma coxa que parecia uma coxa, mas as duas coisas juntas eram uma coisa nova e não se pareciam com nada. Que criatura poderia ser um dedo e um joelho, um ventre e um cotovelo? Que todo poderia ser maior do que a soma daquelas partes, tão familiares e tão grotescas ao mesmo tempo? O Confessor baixou os olhos subtilmente, como se estas fossem as perguntas que lhe passavam pela cabeça de cada vez que ali entrava. "As minhas agulhas!", ordenou a Condessa.


1 comentário:

  1. Essa condessa de Desce não tinha jeitinho nenhum para "montar" puzzles humanos... trocava as peças todas.

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