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terça-feira, 19 de abril de 2016
Floricultura 17
17. Não é todos os dias que nos entra porta dentro um indivíduo atarracado e musculoso, vestindo um fato-macaco e com as mãos sujas de óleo.
Não é que viesse zangado, e por isso não foi recebido com apreensão. Mas vinha decidido e por isso foi recebido com suspeita. Bateu à porta, ou melhor, tocou à campainha, e anunciou-se. Sou o Moisés. Venho entregar a factura. Uma vez que não vinha incendiar sarças ou separar as águas do mar vermelho, abrimos. Mas qual factura, tivemos o cuidado de perguntar, sempre de pé atrás. E de braços cruzados. E sobrolho carregado. A factura do carro, já o desamolguei. Mas qual carro, aqui ninguém tem carro, o senhor com certeza enganou-se. Ora essa, isto são anos de prática, então eu ia enganar-me numa coisa destas. Carros é comigo, sei à légua quem é o dono, é como se o cheirasse, e o cheiro vem daqui. Não tenho dúvida nenhuma. Mas qual cheiro, quisemos saber. O cheiro do dono do carro, então. Isto basta andar com um carro um mês e o cheiro do dono molda-se ao cheiro do carro. E vice-versa também. E nunca mais, ou enquanto o dono for dono do carro, se cheira um carro sem se cheirar o dono, até à distância. E o cheiro vem daqui. Mas ó homem, se acabámos de lhe dizer que aqui ninguém tem carro. Ai isso é que tem, os senhores é que estão a querer enganar-me. Já não é a primeira vez que alguém tenta esconder-me o dono de um carro, mas eu apanho-o sempre. É o cheiro. Mas tem a certeza de que nunca se enganou, às vezes não se acerta bem, não será no andar de baixo, é que os cheiros sobem, sabe. O meu nariz é de primeira, afirmou. Com orgulho. Levando um dedo ao apêndice. Que avançava quase a direito no meio da cara mas com ligeira inclinação para a esquerda. No que toca a carros e donos de carros não me escapa nada. Por esta altura a cara do indivíduo começava a ficar vermelha, as veias do pescoço inchavam e os cantos da boca acumulavam cuspo. Não havia dúvidas, estava a ficar zangado. E quanto mais zangado ficava, mais decidido parecia, e quanto mais decidido mais zangado. Um pouco perplexos com a teimosia, e a fé, do homem de fato-macaco, dissemos. Pois entre e procure. A casa não é grande. Não tem sótão nem cave nem alçapões. Faça favor de espreitar debaixo das camas e dentro dos guarda-vestidos. A nossa impaciência era quase tão forte quanto a fúria do indivíduo. Mas àquela sobrepôs-se a surpresa completa. Então não é que ele começa a despir o fato-macaco e sai de lá de dentro nu e o fato-macaco fica em pé tal era a sujidade. Tantas coisas surpreendentes ao mesmo tempo fizeram com que o queixo nos caísse ao chão. Mas sem grande ruído. E por isso conseguimos ouvir o homem explicando, o meu nariz funciona melhor se eu estiver ao natural. Mas não se ficou por aqui a cerimónia. Tirou de um bolso do fato-macaco um raminho de alfazema e encaixou-o na orelha. Como um lápis. E disse. Estou pronto.
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Muito bom :-)
ResponderEliminar:-)
EliminarSó a mim é que não me entra uma mecânica - mesmo que atarracada e musculosa - pela casa dentro a querer "cobrar-me" a factura em "modo nuínha".
ResponderEliminarAi quantas amolgadelas mein gott...
N.º 17... De que série?
ResponderEliminarA série chama-se Floricultura.
ResponderEliminarAlexandra, já considerou usar labels nos seus posts, particularmente nas séries longas (como a história gótica)?
EliminarSe usar atribuir a mesma label de forma consistente a todos os posts da mesma série, permite aos leitores ver automáticamente uma lista com todos os posts da série clicando nessa label.
Boa ideia, IV, e tirou-me a palavra, porque é o que eu iria sugerir, agora mesmo, depois de ter ido ver o que é que guardei.
EliminarE, já agora, bastará replicar a técnica usada pela Rita para reunir num só pano, pe., todos os postais da família de achincalhar.
Uhf, a horta está grande...
Obrigada, tentar seguir as sugestões. :-)
EliminarTens de me dizer onde vivem essas pessoas. Preciso de tirar umas amolgadelas do meu carro... ;-)
ResponderEliminarComo tem sido evidente, as minhas histórias são sempre baseadas em factos verídicos. Neste caso, o facto verídico é o senhor Moisés de Jesus dos Anjos, um mecânico que exerce o seu arriscado ofício perto de minha casa e que vejo todos os dias pela janela. Só que ele arranja coisas eléctricas, senão dava-te já o cartão dele. Nota: o ofício é arriscado porque a oficina não tem um espaço para pô os carros que estão a ser arranjados, logo o senhor Moisés estaciona em segunda fila, e já se está a perceber o perigo da profissão, é só pensar em meia-dúzia de carros a bloquear meia-dúzia de outros, juntar meia-dúzia de condutores de orgulho ferido ("mas como é que o tipo se atreve!"), e pronto.
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