sábado, 30 de abril de 2016

"O Povo Vulgar"


"Vão-se refugiar noutro lado!
Aqui não há nada para morar!
Refugees not welcome"



Em Freital, uma pequena cidade com 40.000 habitantes, à distância de dez minutos de comboio de Dresden, há movimentos anti-refugiados muito fortes. Um deles, inspirado no Pegida, chama-se "Frigida". Apesar de ser uma situação extremamente séria, sempre que deparo com este nome não consigo evitar uma gargalhada.

Os movimentos anti-refugiados têm-se revelado um importante ponto de encontro e de fortalecimento de redes da direita radical: de Frigida (lê-se: frriguída) para piquetes de protecção civil e para um grupo terrorista que foi alvo de uma razia na semana passada levando à prisão de cinco dos seus membros - quatro homens e uma mulher.

O jornalista Sebastian Leber foi a Freital, e publicou um longo relato no diário berlinense Tagesspiegel, de que traduzo algumas partes e sintetizo outras.



(O título - "Das gemeine Volk" - é um trocadilho: "gemein" tanto significa "comum" como "repulsivo/imoral/vil" ou, na Botânica e na Zoologia, "sem características especiais". Gostava de ter encontrado uma palavra que sugerisse imediatamente "vil" e "normal".)



O povo vulgar

Sebastian Leber, Tagesspiegel, Seite 3, 26.04.2016

A reportagem começa pelo dono de um dos bares mais populares de Freital, que deixa bem claro que na cidade não há nazis. Enfim, não muitos. E terroristas é que não há mesmo.
Tem um ar tão simpático que uma pessoa se sente tentada a acreditar no que diz. Nos últimos tempos tem-se falado muito de Freital: protestos enormes contra o uso de um antigo hotel para abrigar refugiados, ataques com explosivos a refugiados e partidos de esquerda, e agora a prisão de 5 pessoas da cidade sob acusação de fazerem parte de um grupo de terroristas. Ridículo, diz ele. Essas pessoas não são terroristas. Quando muito, exageraram um bocado e fizeram alguns disparates. Se as conhece? "Nu", diz ele, que é como nesta região se responde para dizer "sim". "Tenho a certeza que querem assustar refugiados, mas não os querem ferir." E acrescenta: "são pessoas normais".
Freital destaca-se no contexto das localidades da Saxónia onde tem havido protestos fortes contra os refugiados. Aqui, o ódio materializa-se de forma mais visível. Nas manifestações contra o centro de refugiados faz-se frequentemente a saudação nazi. Em resposta a um inquérito de rua de um jornal local, uma habitante afirmou que as pessoas de direita que atiram pedras não são perigosas, uma vez que não atiram pedras aos alemães.
O dono do bar continua: na sua grande maioria, os habitantes de Freital não são xenófobos. O que acontece é que têm observado coisas. Por exemplo: desde que os refugiados chegaram, há mais roubos nos supermercados. Ou que os do norte da África às 11 da noite vão comprar snacks à bomba de gasolina, apesar de custarem o dobro do que custam no Aldi. Ou que há sempre estrangeiros a fazer fila nos correios para enviar à família, lá no país deles, o dinheiro que o Estado alemão lhes dá. "Eu não os quero julgar", diz ele. "Faz parte da sua cultura."
No bar está sentado um homem de cabeça rapada. Diz que não é da extrema-direita - aquilo é apenas um penteado. O que o intriga: " Porque é que os sírios vêm todos para cá? Será que na terra deles não têm um exército que os proteja?" O dono do bar concorda. "Imagine-se", diz ele, "que na altura da guerra os alemães fugiam todos, em vez de lutarem pela sua pátria. Ia ser uma catástrofe!" Faz uma pequena pausa. Não, não reparou no que disse.
A cidade está cheia de graffiti contra os refugiados. Encontram-se às dúzias em casas, bancos, por todos os lados:  "no Asyl" ou "não queremos cá um centro de refugiados". Muitos deles ligados às iniciais "N.S." A autarquia diz que não apagou o graffiti porque os conteúdos não são anticonstitucionais. Recentemente, uma iniciativa privada quis remover alguns deles, com a ajuda dos refugiados, mas teve de interromper o trabalho devido à forte pressão de quem passava na rua.
Quem toma o partido dos estrangeiros é ameaçado. Uma vereadora dos Verdes foi ameaçada durante meses, e divulgaram a sua morada na internet. Puseram uma bomba no carro do chefe dos Linke. Os nomes dos dois políticos constavam de uma "lista to-do" que foi colada na janela da sede dos Linke.
As pessoas que foram agora presas são acusadas de terem atirado explosivos para uma casa onde vivem, no rés-do-chão, 14 refugiados da Eritreia. A janela ainda está partida, e debaixo dela lê-se: "N.S." Os refugiados dizem que não ousam sair de casa à noite. Em compensação, recebem frequentemente visitas de jovens que os ofendem e gritam ameaças como "we will kill you". Há tempos arrombaram-lhes a porta da frente. Um dos refugiados fala das diferenças: quando chegou a Munique, no Verão passado, as pessoas acenavam-lhe com simpatia. Se em Freital uma mão se agita na sua direcção, ou é um punho fechado ou é o dedo médio esticado. Pensaram que melhoraria, mas não melhora. Na semana passada havia pessoas mascaradas na entrada da casa, que atiraram gás lacrimogéneo para os olhos de um refugiado.
A polícia andou meses a seguir o grupo que foi preso na semana passada. Os investigadores também estão a averiguar porque é que não foram evitados outros ataques, uma vez que até havia um polícia muito próximo do grupo.
Freital tem uma longa tradição de extrema-direita. O partido NPD começou aqui antes de se instalar em Dresden. O fundador do Pegida, Lutz Bachmann, vem frequentemente à cidade - foi aqui que fez a famosa fotografia em que posava como se fosse Hitler.
Porquê Freital? Os especialistas apontam algumas explicações habituais: o esvaziamento industrial da região depois da reunificação; a saída dos jovens com melhor nível de formação, especialmente as mulheres; a situação na periferia; a sensação de ter ficado pendurado; a busca de uma identidade. Mas será que isso explica tudo?
No conselho da autarquia há situações de cooperação e bom entendimento entre CDU, AfD e NPD que seriam impensáveis noutras cidades. À sugestão do NPD de proibir a entrada nos parques infantis a refugiados, um importante político do partido democrata cristão respondeu que, do ponto de vista jurídico, seria difícil impor essa medida. Um outro disse que ter os refugiados em ginásios não pode ser "a solução final". Em resposta às críticas, acabou por dizer que a expressão consta dos dicionários.
O presidente da Câmara não tem tempo para entrevistas, e manda dizer por escrito que na cidade não há qualquer problema relevante de neonazismo. E que também recomenda uma visita à cidade a turistas com pele escura.
Para quem toma partido contra a extrema-direita, estas afirmações são absurdas. Por exemplo, a empregada de mesa Steffi Brachtel, de 41 anos. Não tem partido, e até há pouco não se interessava por política. Mas um dia um amigo publicou no facebook uma piada que dizia: "Porque é que não há muçulmanos no Star Trek? Porque se passa no futuro." Ela reagiu, dizendo que não tinha graça, e recebeu inúmeros comentários insultuosos. Foi aí que se deu conta de que ou fechava a boca ou arranjava sarilhos. Criou, com mais algumas pessoas, um grupo chamado "organização para abertura e tolerância", e desde então alguns amigos, conhecidos e vizinhos afastaram-se dela. A mãe de uma colega do filho acusou-a entredentes, na paragem do autocarro: "tu és pelos do centro de refugiados".
O corte atravessa as próprias famílias. Na da Steffi, é o seu irmão mais novo. Ele acredita que a Alemanha continua sob ocupação americana, e que o mundo inteiro é dominado pelos judeus. Há muito tempo que é assim, mas dantes era possível falar com ele sobre outras coisas, era possível ouvirem música juntos. Ultimamente, com o Pegida e a crise dos refugiados, já não se pode falar com ele. "Agora estamos em lados opostos."
Em Julho participou numa sessão camarária de esclarecimento sobre o alojamento dos refugiados. Na sala, foi insultada e ameaçaram-na de que também iam deitar fogo à casa dela. Quando, no fim da sessão, perguntou ao pessoal da segurança porque é que não tinha feito nada, responderam-lhe "preferimos ter cinco como tu contra nós do que trezentos como eles."
No bar do inicio da reportagem todos a conhecem. O simpático dono diz que o grupo de voluntários é constituído por gente que se quer fazer importante. E por mulheres que estão a precisar de ser fodidas.
A Steffi Brachtel já foi seguida por um carro à noite, no caminho entre a paragem do autocarros e a sua casa. Já rebentaram a sua caixa do correio com um explosivo. Quando perguntou na polícia que riscos reais corria, responderam-lhe que se todas as pessoas fizessem essa pergunta, a polícia não teria tempo para fazer o trabalho.
Segundo ela, as acções da extrema-direita foram vistas como bagatelas durante anos. Talvez porque encará-las de frente implicasse muito trabalho e muitos riscos. Talvez porque pareça ser uma guerra perdida à partida. Talvez porque muitos estejam de acordo não com a violência, mas com os princípios que lhe estão subjacentes. O que explicaria porque é que os graffiti não são apagados.
A iniciativa de âmbito nacional "levantar a voz contra os nazis" quis dar um concerto em Freital com artistas famosos, para dar algum apoio aos voluntários e aos refugiados. A autarquia começou por recusar, afirmando que a ideia de haver neonazis em Freital é um cliché. Só mudou de atitude devido aos protestos vindos de toda a Alemanha.
A palavra "cliché" soa cínica quando se fala com um jovem refugiado do Ghana, de 18 anos, que vive na cidade. Se pára às dez da noite em frente à sua casa, não demora nem um minuto até que alguém grite, do outro lado da rua, "Scheißneger". Ele conhece bem esse e outros insultos, como Bimbo e Kanacke. Já atiraram explosivos na sua direcção, e deitaram cascas de bananas à porta da mulher alemã que o tem à sua guarda. Comenta que em Freital tratam as pessoas de pele escura abaixo de cão. "Penso que nesta cidade as pessoas têm orgulho em serem de extrema-direita", diz. Chegou há oito meses, e aprendeu rapidamente a evitar a rua central, e sobretudo os cafés. Só sai à rua quando é absolutamente necessário. Frequenta um psicólogo de uma cidade vizinha, especialista em traumas, que lhe dá alento para a vida quotidiana, e lhe diz que deve ignorar quando lhe chamam "ratazana preta". A sensação de alívio desaparece mal chega à estação de Freital e os insultos recomeçam.
Pensa em suicídio. Diz que a sua capacidade para aguentar o sofrimento não é infinita. Mas também tem esperança: talvez consiga em breve um lugar de aprendiz em Münster. Já esteve lá uma vez, e diz que se sentiu profundamente surpreendido: as pessoas trataram-no como se fosse um ser humano.


9 comentários:

  1. Respostas
    1. Foi a minha primeira escolha. Mas "ordinário" é demasiado leve para traduzir "gemein".
      Também pensei em banal, que por um lado dá para o sentido "comum", e por outro lado lembra a banalidade do mal.
      Também ninguém disse que traduzir era um trabalho fácil...

      Eliminar
    2. Também concordo que "ordinário" seria melhor tradução do sentido aqui pretendido com "gemein".

      Já agora: um "refugiado" do Gana? Há lá alguma guerra?

      Eliminar
    3. Em Portugal diz-se "canalha" ou, sendo algo ininputável, "acanalhado", o que pode ser confirmar-se neste dicionário, cujo uso inicial é livre e gratuito:
      http://www.infopedia.pt/dicionarios/portugues-alemao/acanalhado
      PS
      Querendo usar linguagem politicamente correcta (PC), dir-se-á "Delinquente Inimputável Perigoso" (DIP)

      Eliminar
  2. Helena:
    Mudam-se os tempos mudam-se as vontades (e as mentalidades).
    É curioso que seja nos países que mais se intrometeram nos outros, que por vezes subjugaram, que outras vezes se intrometeram em territórios ainda não constituídos formalmente como países, que colonizaram, que surjam agora tantas objecções para perceberem que uma moeda tem duas faces.
    Agora, os bem intencionados, em vez de recusarem liminarmente os refugiados, tentam fazer a distinção sobre quem deverá ter esse estatuto.
    Se vêm de países que não têm guerra (de balas e de bombas) não podem ser recebidos como refugiados (no caso da fome e da morte).
    É evidente que não é pensável o despovoamento de países inteiros, ou de semi-continentes, e a colocação dessas populações noutros países (na caso presente nos da Europa), mas o que me intriga é a atitude de recusa antes de se pensarem as impossibilidades práticas.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "(...)mas o que me intriga é a atitude de recusa antes de se pensarem as impossibilidades práticas."

      Também temos o oposto, ou seja, a atitude de aceitação antes de se pensarem as impossibilidades práticas. Foi aí que caíu a Frau Merkel, a qual fez depois um acordo com o Erdogan, que foi pior que o soneto.

      Em minha opinião, tanto os oponentes de todo e qualquer tipo de acolhimento, como aqueles para quem as fronteiras e coesão dos estados não interessam (alguns até desejam abolir umas e outros)estão errados, e ambos cavalgam ondas demagógicas e populistas, já para não falar dos "corações sangrantes" que se acham melhores pessoas que os outros, só por terem uma atitude emotiva e irracional perante o fenómeno. Também há, ainda, os que, por anti-ocidentalismo, gostavam de ver a Europa inundada de imigrantes, refugiados ou exilados - desde que isso não perturbasse o seu sagrado sossego de bem-pensante metro-social, claro.

      Eliminar
    2. BRAVÔ!!!, Alexandre! BRAVÔ! *CLAP CLAP CLAP* de pé. Para o texto no seu global como para a última frase que está também muito certa.

      Tudo isto tem sido feito de forma emotiva e, claro, dá asneira. Pode chamar-se o que se quiser àqueles que defendem o que a Helena nos trouxe hoje. Pode-se insulta-los, pode-se chamar-lhes nazis, xenófobos, o que quer que seja mas a realidade é que eles efectivamente existem. O grande problema é que vão sendo cada vez mais e mais e mais a pensar desta forma em vários países e a agir. É precisamente que se chegue ao ponto da violência sem controlo que há que evitar porque uma vez aí chegados as coisas tornam-se muito mais complicadas e a corda parte sempre para o lado mais fraco. Será triste de ver.

      Eliminar
    3. Vá lá, meu caro, estava à espera de uma pateada, mas você antecipou-se! ;-) Bem haja!

      Eliminar
  3. Dualidade hipócrita da esquerda. Uns têm de ser compreendidos nas suas diferenças, os outros não, ou, extrema-direita deve ser proibida e a extrema-esquerda não. Um extremismo é bom e o outro é mau? Porque não proibir (ou lutar contra) os dois? Se há extrema-esquerda, logo também haverá extrema-direita. Obrigar as pessoas numa direcção (chama-se ditadura) só pode fazer com que estas se refugiem no extremo oposto, onde têm a sensação de ser compreendidas. E muitas das pessoas no artigo são certamente pessoas razoáveis, mas que têm vindo a esquecer essa razoabilidade pela forma como são obrigadas a aceitar o que não querem, e sem que lhes tenha sido dada a oportunidade concreta e objectiva de compreender e aceitar.

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.