quarta-feira, 27 de abril de 2016

O golfinho e o escorpião



       Não se pode pedir a um delicodoce golfinho ou a um perigoso escorpião que contrariem a sua natureza. A milenar sabedoria oriental, em especial a chinesa, têm teorizado muito sobre o assunto. Numa palavra, quanto mais velhos ficamos, mais quimérica é a ideia de mudança de personalidade.
Vem isto a propósito de Marcelo Rebelo de Sousa e dos seus primeiros cerca de mês e meio de consulado. Se se pretender um balanço global, a nota do Professor é elevada, talvez a rondar os 16, 17 valores. Tem provado que quer ser um Presidente da República (PR) abrangente, facilitador de diálogos, adepto da “descrispação” (palavra de que usa e abusa, até a propósito de um gin alentejano), um beijoqueiro de primeira, presente em tudo o que é evento, um hiperactivo como sempre foi.
Em termos políticos, Marcelo tem jogado pelo seguro: não dispensou a sua “lua-de-mel” com os Portugueses e muito menos com o Governo. Tem sido uma espécie de porta-voz oficioso de Costa, dando-lhe pancadinhas nas costas em todos – ou quase – os assuntos em que o melindre das situações poderia causar engulhos. Assim sucedeu no episódio do Colégio Militar, onde interpretou na perfeição as suas funções de Chefe Supremo das Forças Armadas, do mesmo modo que se bateu pela desblindagem dos estatutos das instituições de crédito, no que é, na prática, uma verdadeira “lei-medida”. Soube preservar a esfera de competência exclusiva do Executivo no caso das bofetadas de João Soares, e foi vê-lo dar um sentido abraço de desagravo ao candidato a pugilista.
Linha de actuação política? Aparentemente, a da proximidade e dos afectos. Nada tenho contra uma e outra, mas é evidente que, mesmo mantendo ambas, é curto para uma função presidencial. Em especial num sistema em que o órgão de soberania PR, tendo as suas competências – como deve – balizadas na Constituição, é aquele que de modo mais plástico se vai adaptando à realidade de cada momento e ao concreto titular. Daí que Cavaco tenha sido, p. ex., o oposto de Marcelo, tanto quanto Sampaio será recordado como o gentleman de lágrima fácil e Soares como o Presidente com a concepção mais monárquica da III República.
Há, pois, na facilidade e no gosto do trato com o Povo, um grande paralelo com Soares. Simplesmente, é de alto risco o plano de Marcelo. Não se lhe pode pedir que dispa o fato de comentador político-social-desportivo, pois voltaríamos à história da natureza do golfinho e do escorpião. Mas o tempo chegará em que Marcelo não poderá apoiar Costa, seja por erro nas políticas, seja por tacticismo. E ninguém duvida que o actual Presidente é um exímio jogador de xadrez político. Na teoria, pelo menos, é o melhor. Na prática, terá agora a oportunidade da vida para o demonstrar.
Excelente discurso nas comemorações do 25 de Abril, com os deputados mais à esquerda a não conseguirem impedir as mãos de aplaudirem um ex-Presidente do PSD. Os gestos involuntários têm destas coisas, bem como a necessidade de cavalgar a onda de um PR que vem sendo um dos Sísifos da “geringonça”.
E quando acabar a “lua-de-mel” com o Governo, o que fará Marcelo? Como tudo no actual PR, nem os astros sabem. Todavia, a História ensina-nos que o “namoro” de Cavaco e Sócrates, p. ex., terminou com uma ruptura em que a “roupa suja” foi lavada nos enfadonhos prefácios aos “Roteiros” cavaquistas.
Marcelo não precisa de conselhos. Não obstante, com a humildade de um mero cidadão, era bom que não comentasse tudo e mais alguma coisa, que se resguardasse mais. Já todos entendemos a “política dos afectos” que, não enchendo barrigas, sempre ajuda a aquecer o coração. Gostamos, mas não é só isso que se espera de um PR. Quando os “puxões de orelhas” forem necessários – sobretudo em privado –, não há espaço de manobra quando a imagem da Presidência se vai desenvolvendo na sombra da do Governo. E Costa, inteligente como é, tem-no sabido aproveitar.
Estará Marcelo a cair na teia “candidamente” urdida pelo Primeiro-Ministro, ou à primeira oportunidade é o Presidente que demonstrará o seu lado “escorpiónico”? Entre “marcelices” e “costices”, havemos de saber. E um agradecimento a estes dois protagonistas que têm dado muito mais cor a uma política que estava morta com o eixo Cavaco-Passos-Portas e agora é motivo para uma espreitadela ao “Estoril Open” ou para uma visita à última ferrovia alentejana.

5 comentários:

  1. Muito bom. Com o bónus do prazer de não conseguir adivinhar quem escrevia sem espreitar a assinatura :-)

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    1. No início, pensei que fosse o início de mais uma história da Alexandra e depois fiquei agradavelmente surpreendida. Não contava que o André voltasse a escrever aqui tão depressa.

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  2. Para mim, o actual PR é indomável e só obedece à sua consciência. E quando assim é podem acontecer: grandes e arriscadas decisões, inclusive a convocação de eleições antecipadas, se entender que o governo em funções não tem pernas para andar ou que só está a fazer asneiras. Nem será de excluir a hipótese de renunciar, se considerar que já não tem o apoio da maioria dos seus concidadãos. Aguardemos, pois, calmamente.

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  3. Foi elegante, substituindo o sapo da estória tradicional por um golfinho.

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    1. Se a troca ficou a dever-se a uma questão de elegância, podia o autor ter escolhido o polvo que, como se sabe, possui as faculdades de camuflagem e de adivinhação. Além de que, desloca-se como nenhum outro do reino submarino e esconde-se em qualquer buraquinho, por mais pequeno que seja, mas quando atacado, dispara um jacto de tinta que baralha por completo os predadores. Para ser sincero, prefiro-o a nadar num arrozinho malandro com bastante tomate à volta e umas ervinhas de cheiro. Mas, não o desdenho, se vier frito, envolto num pomo de ovo e farinha ou até grelhado na braza. Ah!!! Mas sempre, sempre bem acompanhado de um branco geladinho... de Bucelas, por exemplo.

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