terça-feira, 19 de abril de 2016

Civismo

Os EUA são um dos países mais ricos do mundo e, no entanto, também há pobreza, desastres naturais, violência, etc. As notícias acerca do que está mal nos EUA abundam, mas muito poucas pessoas observam uma coisa que está bem: os americanos, apesar de projectar uma imagem de capitalistas e individualistas, são extremamente generosos com o seu tempo, dinheiro, e capacidades. O espírito de entre-ajuda é muito forte. Há variações de zona para zona, como em tudo, mas mesmo as companhias americanas dedicam parte do seu tempo a actividades para a comunidade. Por exemplo, aquando do furacão Katrina, o Walmart e a Igreja Mormon foram as primeiras entidades a chegar às vítimas com ajuda, antes mesmo do governo federal.

Quando andava na Universidade em Coimbra, vi uma vez um estudante internacional numa cabine telefónica com a mala ao pé a tentar arranjar um quarto. Quando eu vim para os EUA estava tudo tratado para os estudantes internacionais; parte das coisas foram feitas pelos gabinetes onde as pessoas são pagas, como reservar quarto numa residência, mas outras coisas era coordenadas entre o gabinete e voluntários: motoristas (pagos ou não) com voluntários iam buscar os estudantes ao aeroporto; no aeroporto, a senhora que estava na recepção era uma velhinha voluntária muito simpática que tinha os contactos da universidade, caso algum aluno se perdesse; nas residências, os estudantes organizavam actividades para receber os alunos novos e havia voluntários que nos levavam pelo campus e mostravam onde eram as nossas salas de aula, a biblioteca, a livraria, as cantinas, etc. Alguns fins-de-semana depois, pessoas da comunidade adoptavam um estudante internacional durante um Sábado e mostravam-lhe como era viver um dia tipicamente americano.

Isto são actividades esporádicas, não faz sentido estar a gastar recursos não só em dinheiro, mas em tempo para seleccionar tanta gente e processar a sua papelada, para contratar pessoas apenas por uns dias duas vezes por ano; mais vale ter um exército de voluntários recorrentes na comunidade, a quem basta telefonar ou enviar um email.

Como estudante, era esperado fazermos voluntariado não só para termos algo para meter no nosso CV e para melhorarmos as nossas "social skills", mas também, no meu caso que era de Portugal, para sensibilizar a comunidade para a minha cultura. Várias vezes, fui a uma escola primária para falar de Portugal: da geografia, da cultura, da nossa história, da nossa língua. Levava um PowerPoint onde tinha a informação, com umas fotos, um mapa, algumas palavras escritas em português e inglês e no fim conversava com os alunos pequeninos, alguns mal sabiam falar inglês, acerca de Portugal. Alguns dias depois, recebia no correio um envelope com um desenho dos alunos e uma nota da professora a agradecer-me a minha presença.

Houve um programa em que participei do qual guardo boas recordações, foi o Kidstock: uma feira de actividades para crianças. Nesse caso, não participei por ser de Portugal, apenas porque estudava na universidade e aquilo era uma actividade organizada pela universidade para as crianças da zona. É importante que as crianças visitem o campus e convivam com os estudantes universitários, pois isso aumenta a probabilidade que associem boas experiências à vida universitária e mais tarde frequentem a universidade e tenham sucesso. Quem conhece a história de Neil DeGrasse Tyson, sabe que ele visitou Carl Sagan na Cornell, a alma mater americana do nosso LA-C:

At the time deGrasse Tyson was just a 17-year-old kid from the Bronx with dreams of being a scientist, but Sagan had invited him to spend a Saturday with him in Ithaca at Cornell University, after seeing his application to attend University there. DeGrasse Tyson toured their labs, and Sagan gave him a book, "The Cosmic Connection." He inscribed it "to a future astronomer".

Fonte: Tech Insider

Então no Kidstock, o meu grupo de estudantes incluía um menino paraplégico e havia uma actividade que não o deixavam fazer porque envolvia passar por uns tubos de lona e tinham medo que ele se magoasse ou estragasse a estrutura. Eu achei que não havia problema e insisti para que ele fosse comigo -- há vantagens em ter apenas 1,53m. Acompanhei-o para me certificar que a cadeira de rodas não se enrolava em nada e correu tudo bem, ele conseguiu fazer a actividade, e no fim estava feliz. E eu também fiquei feliz por vê-lo feliz.

Não precisei de receber dinheiro para ter satisfação em contribuir para o bem-estar daquela e de outras crianças. O dinheiro não é tudo. Pensar que apenas devemos fazer coisas quando nos pagam é sinal que não somos muito boas pessoas e de falta de dedicação à sociedade que nos educa como indivíduos. O dinheiro é um recurso escasso na sociedade e temos de nos ajudar uns aos outros porque isso também é uma forma de aumentar o bem-estar da sociedade e pode ser mais vantajoso para todos haver voluntários do que sermos pagos. Acham que alguém ia pagar a um português para ir visitar escolas primárias americanas para falar sobre Portugal? Será que, quando alguém tropeça na rua, estendemos a mão para que nos pague antes de ajudarmos a pessoa a levantar-se?

A PBSKids, o canal de TV que é serviço público nos EUA, tem na sua página de Internet várias razões pelas quais as crianças americanas devem fazer voluntariado. E o canal de TV público português oferece algumas? Penso que não, tomem lá o da TV americana:

Volunteering is good for YOU Are you thinking, "What's in it for me?" The answer is, plenty! Here are some of the things you might get in return for your giving:

  • Making new friends
  • Gaining important skills and experience that will help you later in life
  • Making connections that can lead to a job or career
  • Seeing more of your community and world
  • Building confidence and self-esteem
  • Exploring what you want to do with your life
  • Feeling needed and important
  • Feeling satisfaction at getting things done and helping others
  • Meeting people who could be role models
  • Using your mind, body, and creativity
  • Getting active and healthier
  • Relieving stress
  • Fighting boredom
  • Spending time doing what you really care about
  • Gaining an edge on getting into college
  • Feeling like you're part of a community
  • Having fun!

12 comentários:

  1. Acrescento, humildemente, que o voluntariado também é uma maneira de redistribuir a riqueza (tempo é dinheiro), e muito mais gratificante do que pagar impostos.

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    1. Concordo plenamente, para além disso, quando somos nós a ajudar, vemos o uso que o nosso contributo para a sociedade tem e sabemos o resultado; já quando é pagar impostos, corremos o risco de estes serem usados para financiar amigos e em despesas não-produtivas.

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  2. Para quando a Rita vier de férias a Portugal:

    http://bolsadovoluntariado.pt/

    Agradecíamos (nós, como residentes em Portugal) a ajuda.

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    1. Obrigada pela facilitação do recurso; no entanto, não é preciso estar em Portugal para fazer voluntariado que ajuda Portugal e os portugueses.

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  3. Isto é uma indirecta para a Catarina? ;- ) (Continuo a dizer que me recuso a dar atenção aos títulos de jornal retirados de discursos de meia hora; já dei para esse peditório com os bifes da Jonet e outros).

    Mas eu ria-me imenso quando o meu marido californiano via lixo num rio em França e dizia "Porque é que as pessoas não limpam???"

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    1. Quando eu estava na Society of Environmental Scientists, fazíamos uma recolha de lixo anual numa floresta. O comentário da Catarina Martins recordou-me que eu ainda não tinha falado de voluntariado aqui, apesar de eu ter beneficiado de e ter participado em muitas actividades.

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  4. Existe bastante voluntariado em Portugal, mas tem uma estrutura diferente do anglo-saxónico ou do nórdico. O nosso voluntariado - como quase tudo, diga-se - é feito através de instituições. A grande maioria é religiosa ou ligada à religião - as misericórdias (tirando a de Lisboa, que é do Estado), ou as Conferências de S. Vicente de Paulo ou mesmo coisas mais estruturadas como a Cáritas ou, mudando de igreja, a Legião da Boa Vontade.

    O que temos menos é voluntariado autónomo (do género venha ser voluntário nisto ou naquilo com enquadramento menor) ou de origem na "sociedade civil". Isto não é tanto defeito, mas antes feitio - os Portugueses são muito paternalistas e comunitaristas. Gostam de fazer as coisas enquadradas e em conjunto.

    Pegando no tema, um aparte à minha experiência no Reino Unido onde havia (e suponho que ainda há) um contra-movimento que apelava às pessoas para NÃO se voluntariarem. Como o voluntarismo era "amador", a maior parte dos voluntários consumia recursos em vez de produzir (só em treino era mato) e atrapalhava mais que ajudava, para depois de aprenderem irem-se embora...

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    1. O meu comentário anterior desapareceu???

      Já agora, esse problema que o Carlos Duarte aponta (que o voluntariado tem de ser feito com profissionalismo) é a razão fundamental por que a Montis - Associação de Conservação da Natureza está a fazer neste momento uma campanha de crowdfunding para desenvolver um programa de voluntariado estruturado e sustentável, a começar num baldio que tem sob gestão. Naturalmente, uma ideia mais difícil de vender do que comprar um terreno para o dedicar à conservação da natureza... Está aqui:

      http://ppl.com.pt/pt/prj/e-tu-e-eu

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    2. Isabel, o seu comentário está em cima, eu até lhe respondi.

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    3. É verdade, Rita, não tinha visto.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. É sobre os EUA e sua percepção, em qualquer dos casos com grande mestria e profundidade.

    Não é nada que me surpreenda, face a outros textos e, por isso, não tendo reservas, fui directo, sem inventar transposições para outros espaços. Não porque sejam inviáveis, antes porque implicam que se investigue.

    Copiar, qualquer um saberia copiar e é isso que os desastrados yuppies fizeram muitas vezes, sempre que os deixaram, e por toda a parte, nem sempre de modo devastador.

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