sexta-feira, 3 de junho de 2016

Conto contrariado 30


30. "Arretez-vous, espèce de loup-garou à la graisse de renoncule de mille sabords!!!". Madame
Vivianne, de mãos postas à altura da anca farta e de cotovelos em vê, bloqueia a passagem do Doutor Lapato que subia a escada da casa com a sua pequena mala de couro vermelho na mão direita. A francesa imponente escapulira-se do salão algures entre o terceiro e o quarto prato cor-de-rosa e subira até ao segundo andar onde se encontra alguém de quem ainda não se falou, ou de que se mencionou apenas a ausência, que também é uma maneira de falar de alguém, pensando bem. A presença no sótão é bastante misteriosa, mas a ausência à mesa do pequeno almoço, nessa manhã na cozinha, deve igualmente ser esclarecida numa casa com uma presença e uma ausência. É que uma presença e uma ausência não são a mesma coisa, são até coisas contrárias, e ainda que uma mesma coisa possa estar presente num sítio num momento e estar ausente doutro sítio nessa altura, ou estar presente num sítio num momento e estar ausente desse mesmo sítio numa altura diferente, nada pode estar presente e estar ausente no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Mas sendo assim, é verdade que a ausência à mesa do pequeno almoço na cozinha pode ser a presença no sótão, ainda que aconteçam ao mesmo tempo, já que a cozinha e o sótão não são o mesmo lugar. E será natural presumir que são estados diferentes da mesma coisa, que o que ou quem está ausente da mesa da cozinha é o que ou quem está presente no sótão, porque gostamos de dar sentido às coincidências e porque assim se resolveriam dois mistérios com uma só explicação e se há outra coisa de que gostamos é de explicações parcimoniosas. Mas devemos respeito aos factos nas nossas teorias, e o facto é que ninguém na casa sabe o quê ou quem está no sótão, mas todos na casa sentiram uma ausência à mesa do pequeno almoço, alguns até de forma metafórica, dando a entender que estarão habituados a que a coisa ou pessoa ausente dalí nessa manhã costume estar presente ali noutras manhãs, o que por sua vez significa que sabem o quê ou quem é, porque estão com ele ou ela todas as outras manhãs ao pequeno almoço, pelo menos. Especulações à parte, Madame Vivianne escapulira-se do salão e subira até ao segundo andar para ir ao encontro de Maria Antonieta, a neta mais velha da casa, que se recusara nessa manhã a descer para o pequeno almoço depois de uma discussão épica com um pai ribombante e colérico, esse mesmo, o oficial de cavalaria. Maria Antonieta é a aluna favorita de Madame Vivianne, que a prefere até à Tia Menor. Não por ser uma jovem delicada e vaporosa, pestanejante e ruborescente, como fora a Tia Menor com a mesma idade, mas porque Maria Antonieta nunca quer agradar a ninguém, o que a torna muito atraente, e detesta fazer coisas que não compreende, o que explica que se tenha recusado a participar nos preparativos da manhã e na própria refeição celebrando um acontecimento que não quiseram dizer-lhe do que se tratava. "Espèce de bougre d'ectoplasme à roulettes! Grotesque polichinelle! Hurluberlu! Phlébotome! Simili-Martien à la graisse de cabestan!" Com um golpe seco do braço esquerdo, recuperado da surpresa de encontrar nas escadas Madame Vivianne e a sua enxurrada de impropérios idiomáticos, o Doutor Lapato deita por terra a francesa e continua a sua ascensão em direcção ao sótão, seguido da voz de contralto indignado que grita "Zouave interplanétaire! Sinapisme! Sombre oryctérope! Que le grand cric me croque et me fasse avaler ma barbe! Mille millions de mille milliards de mille sabords de tonnerre de Brest!"

3 comentários:

  1. Eu sei, eu sei, Schrödinger tinha um gato e tal. Mas eu de realidade não percebo nada, nem assinei contrato que me obrigue a aturar-lhe - à realidade - os achaques. :-)

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    1. A realidade é uma imposição, ou seja, uma ditadura.
      a ficção é a nossa arma para lutar contra essa ditadura.

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