domingo, 5 de junho de 2016

História gótica

74. Não pensou o carcereiro intermitente nas consequências da sua diligência, para si e para toda a aldeia, ao prender alguém com uma família tão belicosa.
Acontece não reparar nos perigos àqueles que praticam uma actividade sem a necessária capacidade de lhe perscrutar as minúcias e sem o conhecimento das suas repercussões. E acontece porque o orgulho e o entusiasmo embotam a perspicácia. Também acontece por desde logo não ser dotado desta o praticante, mas tal consideração é um parêntesis misantropo. O orgulho é nestes casos o sentimento de ter sido o escolhido entre tantos ignorantes de uma actividade como aquele ignorante cuja ignorância podia apesar de tudo estar ao serviço, neste caso, da justiça e da ordem. É preciso reconhecer que o escolhido não se vê a si próprio deste modo, esclareça-se em mais um parêntesis. Ser-se escolhido por se ser o melhor dos ignorantes só pode causar um sentimento ambíguo e uma insegurança incompatíveis com o orgulho, já que ser o melhor e ser o maior nem sempre são qualificações fáceis de discernir. O que significa que ser o melhor ignorante está a um passo de ser a mesma coisa que ser o maior ignorante. E até mesmo o ignorante compreende que ser o maior deles é ser o maior de uma coisa que mais contribui para a infâmia do que para a boa reputação. Mas esta pode ser uma consideração contrária à que acima se apresentou sob a forma de um parêntesis, isto é, uma consideração que é fruto da filantropia.  E sabe quem da vida tem tido experiência, sobre a qual em seguida exerce um módico que seja de reflexão, que, no que respeita ao amor e ao ódio à humanidade, qualquer posição dogmática defendendo um único princípio é, por enquanto, precipitada. Mas felizmente, no caso em causa, o do orgulho do ignorante, não temos que concluir por um deles, uma vez que, se uma condição para o orgulho é a confiança, e se esta é incompatível com a insegurança da ambiguidade, então o mais provável é, como aliás se observou em mais um parêntesis, que ignore o ignorante a sua própria ignorância. E se ignorar uma falha é um ingrediente da felicidade, posto que contribui muito para esta a ausência daquela, então o ignorante não apenas ignora mas é feliz, e feliz por isso, porque ignora. E a felicidade é desejável por ser um bem ou é um bem por ser desejável. Para concluir o raciocínio, sendo a atribuição de uma falha a alguém uma possível manifestação de misantropia, e sendo a identificação de um bem para alguém um provável sinal de filantropia, podemos assumir ambas as perspectivas sem assumir nenhuma. Principalmente se acordarmos críticos e dialécticos. Como deve ser, aduza-se em outro parêntesis ainda. Tudo isto posto, afirmemos o que já afirmámos, que o orgulho do amador de, no caso em apreço, carcereiro decorre daquele reconhecimento da natureza excepcional de um indivíduo que todos os homens procuram, e que tem sido um obstáculo considerável à construção de uma sociedade igualitária. Ao entusiasmo podemos atribuir uma origem semelhante.

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