domingo, 3 de julho de 2016

História gótica



88. Zephaniah, A Grande, não recebeu o filho prófugo de Viorica. É duvidoso que tenha sequer tomado conhecimento da sua existência, e do que lhe sussurraram ao ouvido fixou apenas que o sapato de um homenzinho da floresta estava ali, à mão, às mãos dos zíngaros.
Rodeado de facas, o rapaz entregou a raridade sem lançar um pio. Passou a nova riqueza a fazer parte do tesouro da feiticeira, juntamente com a mecha de cabelo de um taumaturgo que esgotou os seus milagres antes de se salvar a si próprio, o anel de uma divindade aquática, e o dente cariado do mais eloquente dos sofistas. Górgias que defendeu Helena cujo rosto lançou mil navios assim o reconheceu um tragediógrafo assassinado. Um espião, um desordeiro, um herético. Porque o mundo está repleto de facas. Não apenas aquelas que o artista ambulante afirma ser capaz de atirar sem que acerte na comparsa. Aquelas também que fazem avançar a história e fazem avançar as histórias, as facas que os senadores enterraram no inimigo da república, ou as facas dos gaúchos que atravessam gerações buscando-se uma à outra. Os nómadas viraram as costas ao rapaz e este pôs-se a caminho dos sucessos da cidade. Os murros que recebeu por ter tentado a batota às cartas com quem conhecia todos os truques valeram-lhe um lugar na hierarquia dos delinquentes que vivem no subsolo de todas as urbes, um lugar entre os anjos carteiristas, miúdos de cara suja que as senhoras nunca vêem quando lhes enfiam a mão nas malas, e os ladrões da bolsa ou a vida que surpreendem os janotas no regresso dos teatros ou das bebedeiras. São uma cidade debaixo da cidade, com as suas leis e os seus códigos. Quem transgride é castigado. Quem determina o castigo é o chefe que todos elegeram, o rei do submundo que ostenta uma coroa feita de jóias roubadas e não de lata ou papel. Uma coroa digna, a coroa da sociedade dos marginais, sujos mas orgulhosos dos seus talentos. Como todos os artistas, não aspiram a juntar-se àqueles que habitam a superfície e aos seus modos burgueses. Não são pobres miseráveis obrigados a sobreviver de furtos e esmolas. Desprezam tanto a compaixão como a propriedade. Vivem livres e sabem-no. São os aristocratas que se riem daqueles que enriqueceram com o comércio e os empréstimos a juros. Daqueles que nunca se livrarão da mancha de um labor mesquinho, que nunca sairão da mercearia e nunca abandonarão a usura. Daqueles que mudaram os meios em fins, que não pintam, não escrevem, que decoram as suas casas de gosto ordinário com os objectos que para outros são criações, e que vão aos espectáculos em que os transformaram como quem vai às missas hipócritas do domingo ou a um mercado de escravos. O rapaz emergiu assim da mina de carvão onde passara a vida e abraçou o nobre mundo invertido onde se escapa do adestramento pelo salário e pelo chicote.

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