domingo, 5 de junho de 2016

Assis, o mártir, e os congressos em tempos de poder

Não se ganham batalhas quando não há guerra. Uma frase que roça o truísmo ou uma “verdade lapaliciana” como esta pode bem resumir o último congresso do PS.
O poder, como se sabe, é o mais forte cimento aglutinador de qualquer organização e não há dúvidas que, em democracia, o seu exercício é a mais legítima aspiração de qualquer partido político. Daí que só em situações de derrota nas urnas, de purgas internas ou de uma aparente falta de rumo como hoje sucede no PSD, tornem estas convenções mais interessantes.
Assim não sendo, as chamadas “correntes internas dissonantes” resumem-se aos que efectivamente dão a cara nos congressos e àqueles que o não fazem. No mais recente do PSD, Rui Rio, de modo desajeitado, justificou a sua ausência pelo facto de não querer desviar a atenção do líder em exercício. Sem juízos quanto à personalidade do político – que não conheço pessoalmente –, a frase é, no mínimo, de quem se tem em demasiada conta ou que ainda julga que o Povo (o que é pior) acredita em “histórias da carochinha”. O mesmo foi sucedendo no PP, durante o consulado de Portas, em que nomes como Ribeiro e Castro ou Anacoreta Correia oscilavam entre movimentações de águas profundas e alguns arremedos de presença pública.
Francisco Assis é um homem corajoso e frontal, qualidades raras nos dias que correm, na população em geral e, mais ainda, no meio político. Estes dizem, amiúde, aquilo que pensam que os eleitores querem ouvir e estes sabem que os primeiros o estão a fazer e, mesmo assim, fingem acreditar, dando sempre grandes descontos, maiores que os saldos, às promessas eleitorais.
Somos, por princípio, um Povo pouco exigente com quem nos governa. A famosa “accountability” anglo-americana ainda não chegou a esta lusa pátria e a responsabilidade ainda perece no estado civil de solteira. Basta ver o que tem sucedido no sector bancário. Constâncio, p. ex., até foi promovido a Vice-Presidente do BCE. “Estranha forma de vida” esta ou, se preferirmos, a “meritocracia” ainda é, quase sempre, uma bela palavra para usar à lapela por entre feiras e mercados e beijinhos a peixeiras e vendedoras ambulantes. Vejam-se, a ilustrar, os recentes afastamentos de altos dirigentes da Administração Pública, escolhidos por concurso público pela CRESAP, que, por insuficiências que esta agência tenha, foi uma das mais interessantes formas de credibilizar o exercício do poder nos últimos anos. Só em países onde a democracia ainda não está totalmente consolidada é que a natural alternância democrática coloca os gestores de topo da “coisa pública” de malas aviadas e forçados a recorrerem aos Tribunais, que provavelmente darão provimento ao pagamento de indemnizações a engrossar o défice público.
No palco assim montado, ter a coragem de aparecer e de mostrar discordâncias quanto ao caminho seguido por Costa, que vai diariamente oleando a “geringonça”, devia ser notícia banal em outras latitudes. Aqui, faz parangonas de primeira página.
Assis bem sabe que, por ora, está condenado ao insucesso. Mas também não ignora que a coligação parlamentar de esquerdas dificilmente chegará ao fim da legislatura. Marcelo, em deslize do fato anterior de comentador, deixou cair que a “coisa em forma de assim” que nos governa – sem que na caracterização vá nada de pejorativo, mas a simples verificação que um partido europeísta não pode conviver “em união de facto” com outros que defendem um abandono da UE e um eventual regresso ao escudo –, provavelmente se desmoronará nas autárquicas.
Aí, Francisco Assis terá marcado posição e pode aparecer como alguém que “apanhe os cacos” ou que, se os dados macroeconómicos derem para disfarçar a situação preocupante em que na verdade nos encontramos, dispute a liderança de Costa.
Quanto ao mais, os congressos de partidos no poder são “passeios na praça” e, sobretudo, forma de o líder mostrar aos apaniguados quem manda e quem distribui mordomias. É uma prova de vida de um Presidente ou Secretário-Geral ao partido, como o dono de um campo que, regressado da cidade, faz ver aos jornaleiros quem é o patrão. E, neste momento, é Costa, o hábil e “levemente irritante optimista” que, contra muitas previsões, já leva meio ano ao leme.
Terá tremido mais de três vezes, como no Adamastor pessoano, mas parece continuar a comandar a caravela, ainda que não ignore que a embarcação tem muitos furos tapados com papel de jornal (talvez o “Avante!”). Enquanto o jornal aguentar e os resultados das sondagens não apontarem para uma subida significativa do PS, o jornal terá de servir. Talvez Catarina Martins arranje uns impermeáveis de uma das passeatas bloquistas e “Os Verdes” forneçam uma resina natural milagrosa. Não consta que a esquerda seja muito dada a milagres, mas quando a tormenta é grande, até os santos (dos outros) ajudam.

3 comentários:

  1. «(...)mas a simples verificação que um partido europeísta não pode conviver “em união de facto” com outros que defendem um abandono da UE e um eventual regresso ao escudo»

    Não entendo este enfoque na questão "europeia". As principais divergências, e aquelas com mais impacto real, entre o PS e os seus aliados, são as respectivas atitudes perante a economia de mercado e até a democracia. A "Europa" praticamente não entra no debate político nacional, e o eleitorado demonstra perante ela uma perfeita indiferença, como pode atestar-se nas afluências às eleições "europeias".

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  2. Concordo que este e os demais congressos dos partidos têm sido piores que as sessões plenárias do Parlamento e as sessões de futurismo político na TV.

    “ (...) Francisco Assis (...) homem corajoso e frontal, qualidades raras nos dias que correm, na população em geral e, mais ainda, no meio político"

    - É um país em que se considera "coragem" "ser do contra", no sentido de dizer o contrário, independentemente de se explicitar as razões e uma avaliação da utilidade?

    “ (...) CRESAP (...) uma das mais interessantes formas de credibilizar o exercício do poder nos últimos anos"
    - Serviu para credibilizar/legitimar sem servir para melhorar?

    “ (...) mostrar discordâncias (...) devia ser notícia banal em outras latitudes. Aqui, faz parangonas de primeira página."
    - É a identificação do modelo de negócio dos grandes meios de comunicação?

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