domingo, 1 de fevereiro de 2015

Acerca da competência dos professores

Na sexta-feira, estava a falar com um colega acerca de como eu fui avaliada na faculdade em Portugal. Expliquei-lhe que fazíamos um exame no fim do semestre; se reprovássemos, tínhamos uma época de recurso para repetir o exame. Ele, que andou em West Point e na Yale University, disse-me que parecia um sistema muito draconiano. Eu disse que sim, porque em alguns exames eu reprovei por razões que não tinham nada a ver com o que eu sabia. Por exemplo, reprovei a uma frequência de matemática porque meia hora antes do exame comi um pastel de carne no bar e quando dei uma trincadela no recheio do dito, reparei que estava estragado. Três quartos de hora depois do exame começar, tive de sair da sala, pois fiquei com intoxicação gastrointestinal. No exame de Investigação Operacional, tive nota para ir a oral, mas como antes da oral apanhei varicela, não pude fazer oral, logo reprovei.

Mas eu também quase reprovei por razões que não faço a mínima ideia. Por exemplo, na cadeira de Economia Internacional, que foi leccionada por Júlio Mota e que eu adorei, foi sem dúvida a minha cadeira de licenciatura preferida, foi a cadeira que fez com que economia fizesse sentido para mim, fiz exame e tive nota para ir a oral. Dessa vez, fui a oral e eu sabia aquilo tudo na ponta da língua. Júlio Mota ficou embasbacado comigo, dizia que o meu exame não reflectia o que eu sabia. A mesma coisa me aconteceu na cadeira de Direito Comercial. Deduzo, portanto, que deve haver nas minhas notas da faculdade em Portugal, várias que não reflectem em absoluto o que eu sabia.

Se eu tivesse de fazer o exame que foi administrado aos professores, eu teria uma má nota por várias razões, sendo a primeira delas o facto de eu dar erros ortográficos, pois escrevo com a grafia pré-acordo ortográfico. A segunda razão, é que eu sou péssima em exames, se bem que, eventualmente, durante o meu percurso académico, melhorei, e até passei a todos os exames de qualificação para o doutoramento à primeira (na minha universidade, eram exames de quatro horas, administrados em três sextas-feiras sucessivas, sobre tudo o que era leccionado no mestrado e doutoramento, independentemente de termos feito as cadeiras ou não). No entanto, surpreendentemente, eu tive boa nota nos exames de acesso à universidade: na PGA, no exame do décimo-segundo ano de matemática, e depois no GRE, que é um exame para aceder ao mestrado nos EUA.

Em análise de dados, quando se tem apenas uma observação, é muito difícil fazer uma previsão. No exame aos professores, é-nos pedido que se faça uma previsão da qualidade do professor baseado apenas naquele exame. Acho um exercício com uma margem de erro muito grande para cada indivíduo, logo temos de ser muito cuidadosos na forma como retiramos conclusões dos dados. Tendo nós um Ministro da Educação com formação em matemática, não percebo porque é que ele demonstra tanta segurança nas conclusões do exame e profere coisas como "Não faz sentido que um professor dê 20 erros ortográficos numa frase." Nós estamos na terra de ninguém no que diz respeito à ortografia em Portugal porque temos um novo acordo ortográfico que é medíocre e que é rejeitado pela maior parte das pessoas que vive da escrita em Portugal. E eu pergunto: se quem desenvolveu este acordo ortográfico, que é especialista em ortografia, fez um trabalho tão medíocre, porque é que se exige a professores, que não são especialistas em ortografia, uma performance melhor do que a dos especialistas?

Um outro problema que eu tenho com a forma como se trata o resultado dos exames é que eu ainda não vi nenhum estudo que me indicasse que o número de erros ortográficos é uma boa variável proxy para avaliar a qualidade de um professor. Também me espanta, que ninguém ponha em causa a qualidade das pessoas que fizeram a correcção dos exames--será que todas elas têm a sua ortografia perfeitinha? Quando se comparam os erros dos alunos com os erros dos professores avaliados, encontra-se uma alta correlação, o que indica que os alunos irão levar as mesmas deficiências que os seus professores exibem para a sua vida futura; mas o inverso também pode ser verdadeiro: as deficiências que estes professores exibem podem ser o resultado das deficiências dos seus professores, os tais que já estão estabelecidos na profissão, ou reformados, e não estão sujeitos a exames. E, finalmente, temos de ter em conta a lei dos números grandes: quando submetemos tanta gente a exames, é natural que as caudas da distribuição sejam preenchidas, isto é, está dentro da distribuição normal que haja pessoas que dêem 20 erros numa frase e outras com ortografia perfeita. Acho muito mais interessante saber se essas observações na cauda má da distribuição foram bem medidas para saber se não são fruto de erro e as pessoas têm realmente deficiências de ortografia.

Concluindo, a discussão acerca da avaliação dos professores tem sido muito decepcionante porque, mais uma vez, se insiste em faltar ao respeito às pessoas, causa-se stress na sociedade, e entra-se num ciclo vicioso que, em vez de avançar o país, o mantém num estado de permanente crise. Os nossos governantes dizem coisas irrelevantes, que não resolvem a questão principal, e que é: tendo nós um excesso de professores no sistema, temos de encontrar uma boa forma de seleccionar os melhores para continuarem no sistema. Seria bom para Nuno Crato investir nas suas qualificações leves ("soft skills") e dizer às pessoas que:

  1. É normal que haja pessoas com muitos erros, nós não sabemos as causas dos mesmos, e não podemos concluir grande coisa sem investigar melhor os resultados.
  2. É pena que todos os professores não possam ser contratados, mas o governo está a trabalhar para dinamizar a economia para que essas pessoas possam encontrar empregos noutras áreas.

P.S. Isto digo eu, mas notem que a minha professora de português do décimo e décimo-primeiro anos achava que eu era péssima aluna. O mais engraçado é que todas as minhas professoras anteriores achavam que eu era óptima aluna a português. Ainda bem que eu vim para os EUA; em Portugal, não teria grande futuro.

16 comentários:

  1. Rita:
    Parabéns por ter posto o problema a partir de outro prisma, portanto, noutra dimensão.
    Uma dimensão que é muito mais fácil ser introduzida no debate por quem está fora do círculo vicioso das discussões (seja sobre o que for) maniqueístas e demasiado presas a estereótipos que prevalece entre nós.

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  2. Rita:
    Volto ao seu post.
    Disse: «Também me espanta, que ninguém ponha em causa a qualidade das pessoas que fizeram a correcção dos exames--será que todas elas têm a sua ortografia perfeitinha?»
    A formulação da famosa pergunta dos jogadores da selecção, a que mais respostas erradas teve, e o facto de se dizer no enunciado que se evacuavam pessoas não parece abonarem em favor da competência de quem fez a prova.
    Como se sabe, evacuam-se os locais, não as pessoas.

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    1. Tinha uma pergunta onde evacuavam pessoas? Mas está tudo doido?

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    2. Caro Prof. Luís Aguiar-Conraria:
      Eu li o enunciado dessa pergunta, andei à procura dele para o transcrever aqui mas não o encontrei.
      Sei que a pergunta não era no sentido em que tomou o que escrevi, talvez escrito demasiado à pressa (mas eu ao menos não sou avaliador do IAVE) , mas era no sentido em que a evacuação se referia a retirar pessoas quando isso é errado: retiram-se pessoas, não se evacuam pessoas; evacuam-se lugares.

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    3. Manuel, não me chame professor. O meu nome blogosférico é LA-C.
      Encontrei a pergunta:
      "No plano de evacuação do avião, está previsto meio minuto, em média, para evacuar um passageiro por uma saída de emergência. A cada lugar corresponde uma saída de emergência, determinada pela fila e pelo lado do corredor."

      Penso que a ideia de evacuar um passageiro será pôr-lhe um aspirador no cu durante meio minuto antes de o deixar sair. Muito provavelmente será um avião da TAP.

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  3. O acordo ortográfico, concorde-se ou discorde-se, com mais ou menos críticas das pessoas que vivem da escrita em Portugal é o que está atualmente em vigor e foi aprovado de forma legitima pela AR. Se noutros campos se faz tanta enfase em respeitar o estado de direito não percebo porque neste campo das artes parece que fica bem dizer que não se respeita o AO.

    Documentos oficiais têm, por lei, de ser redigidos segundo a nova ortografia. A escola pública é responsável por ensinar aos alunos a redigir segundo o novo AO. Acho que faz todo o sentido exigir aos professores que saibam redigir segundo o novo AO. Caso se altere dentro de alguns anos o AO para a redação antiga, outra intermédia, ou outra ainda mais diferente da antiga caberá nessa altura aos professores como a qualqur outro profissional estudarem e manterem-se atualizados sobre os assuntos importantes para a sua profissão.

    Em relação ao facto de um exame não ser um método de avaliação perfeito, obviamente que não é. Mas por exemplo é um método melhor do que exames orais em que iria existir uma grande discrepância de critérios de avaliação. Além do mais parece-me que inerentemente à profissão que pretendem desempenhar qualquer professor se deveria sentir à vontade a realizar um exame. Caso não seja o caso talvez se devam dedicar a outra função. Considerando que existe um numero de candidatos bastante superio ao número de vagas parece-me uma forma bastante justa de seleção especialmente tendo em conta que outros métodos como por exemplo a entrevista, numa cultura como a nossa, dariam muito mais azo a situações de injustiça, compadrio e "cunhas"...

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    1. Pode fazer sentido exigir o novo AO, mas também faz sentido perguntar quem tem mais probabilidade de dar erros de acordo com o novo AO e eu penso que, quem faz a correcção dos exames, tem uma probabilidade maior do que os professores mais jovens que estão a ser submetidos ao exame.

      Eu não tenho problema com o método em si de se usar um exame para avaliar professores. Eu tenho problema em se usar resultados pontuais do exame para condenar uma classe inteira de pessoas. Está estatisticamente incorrecto e é intelectualmente desonesto.

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    2. Já que estamos com minudênicas, o AO não está em vigor e o Estado pode correr e saltar que não está. Pela própria definição e características do Acordo, a sua vigência (ou força de lei) apenas se manifesta quando o mesmo for ratificado pela maioria dos signatários. Ora isso não aconteceu, com os países africanos (com Angola à cabeça) a deixar bem claro que nunca o irá fazer.

      Nós, por outro lado e como de costume, estamos a armarmo-nos em progressitas legais e temos um Estado que se obriga (e obriga outros) a cumprir algo que, legalmente, não existe. Repito, o acordo LEGALMENTE não está em vigor.

      Quanto à prova, não tenho nenhum problema com uma prova de acesso por parte do ME. O ME é um empregador e tem todo o direito de criar um método para seriar e seleccionar candidatos. Sendo, no entanto, um ramo do Estado, seria preferível que o tal método fosse escolhido com a concordância dos parceiros (no ramo sindical, podem ignorar a FENPROF porque não existe qualquer abertura para diálogo, mas só).

      Outra hipótese, e por muito que custe aos anti-corporativistas, é criar a tal Ordem dos Professores e limitar o acesso ao ensino público a membros da mesma. Resultou com outras profissões e depois não podem acusar o ME de ser ele que não deixa...

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    3. Cara Rita,
      Concordo consigo. Acho que faz todo o sentido avaliar também os professores a meio ou no final de carreira e afastar os que não cumprem critérios mínimos de competência ou de interesse pela profissão.
      Fui sempre aluno da escola pública e hoje em dia olho para trás e vejo que algumas das escolas em que andei os professores eram de facto muito desinteressados e pouco competentes. Acho que é uma profissão demasiado importante para nos podermos dar ao luxo de ser pouco exigentes com os professores.
      Simplesmente completar com sucesso um curso não chega para assegurar essa mesma competência durante toda a carreira pelo que faz falta implementar mecanismos de avaliação continuos eficientes durante toda a carreira. Infelizmente, é uma classe com muito poder no processo político em Portugal pelo que é muito difícil de fazer este tipo de mudanças e a mplementação destes sitemas de avaliação também não é tarefa fácil pois têm de ser continuamente melhorados e alterados. Contudo por algum lado se tem de começar e estes exames à entrada, com todos os seus defeitos parecem-me ser uma boa forma de habituar os professores a serem avaliados de forma séria.

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  4. Caro Luís Aguiar-Conraria:
    Quer goste, quer não goste do tratamento, o senhor é Prof.
    E eu destoo bastante na blogosfera, onde grande parte das pessoas parece gostar de ofender os outros.
    Ao contrário eu procuro ser respeitoso sem ser subserviente.
    Guardo a acutilância para os argumentos em discussão.
    (E aí, em vez de ter a contestação argumentativa à altura, recebo muitas vezes os tais insultos, como aqui aconteceu no «post» «Portugal afunda-se de vez», de 2/1/15, em que me chamaram diletante três vezes na mesma frase apenas por ter chamado a atenção de um erro de português da «posteira» Rita Carreira. Pior, responderam-me com um argumento gramaticalmente errado. Eu preferi desistir da discussão naqueles termos. Quando o primeiro argumento é «ad hominem» em vez de ser sobre a questão em discussão, eu desisto logo, não vale a pena continuar).
    Retomando o assunto lá detrás, consiste tão-somente nisto o meu tratamento reverencial.
    Mas se prefere será este o tratamento futuro: apenas Caro Luís Aguiar-Conraria.
    De facto, era essa imbecil pergunta, voltei à carga e descobri o enunciado no jornal I: «evacuar um passageiro», se calhar com prisão de ventre, coitado, dá grande má disposição.
    E a outra do tipógrafo também está inteligentemente formulada.
    Bem, a PACC é toda ela a prova provada do ditado português: Bem prega Frei Tomás: fazei (façamos) o que ele diz e não o que ele faz.
    Mas se reparar no tom geral da blogosfera e nas discussões dos fóruns das televisões e rádios, todos os ignorantes defendem a prova e atacam os professores.
    Pensam que é assim que se promove a qualidade do ensino.
    Enfim!

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    1. "Quer goste, quer não goste do tratamento, o senhor é Prof."

      O problema é que sendo prof não me sinto à vontade para dizer as coisas que digo por aqui, como, por exemplo, a resposta que lhe dei ao comentário anterior da evacuação dos passageiros.
      Este blogue tem 10 anos e é para mim um espaço de liberdade. Liberdade que não tenho se for prof.
      Mas agradeço a atenção. Forte abraço

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  5. Caro Rui:
    Desculpe que lhe diga, mas o seu comentário é uma poção concentrada de lugares comuns.
    Infelizmente é assim que pensa a maioria dos nossos dirigentes políticos, e aí é que está verdadeiramente a gravidade da situação.

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  6. As pessoas que conjugam o verbo "tar" e escrevem "ter haver" em vez de "ter a ver"; ou que nunca sabem quando é há de verbo haver ou à de contracção de preposição com artigo" escrevem todas à "acordês".

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    1. Olá Zazie, tudo bom? Já não a via por aqui há imenso tempo.

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    2. Olá.
      Tudo bem.
      Este é um assunto em que acho que há empate técnico. No entanto, o ensino está vergonhosamente mau. Todo. Da primária ao universitário.
      É mesmo o exemplo mais vergonhoso que se pode arranjar. Está mau em toda a parte mas por cá regrediu em 10 anos. Já nem comparo com o do Estado Novo que é uma perola comparada com estes 40 anos. Comparo apenas a última década. Uma vergonha nacional.

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