quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

No reino da percepção

A Rita desmonta aqui um mito. Afinal, os alemães, que gostam tanto de dar lições de moral aos outros, não são propriamente um exemplo: a Alemanha “está em violação do Tratado de Maastricht e já o está há mais um ano do que Portugal: já tem um rácio de dívida pública-PIB superior a 60% desde 2003.”

Muito bem. Sobra uma pergunta: por que raio os credores (especuladores, se quiserem) emprestam dinheiro a um preço tão baixo aos alemães incumpridores e não fazem (ou não fizeram) o mesmo aos portugueses e gregos?

Tem tudo a ver com uma questão de percepção. No mundo financeiro reina a percepção. Por várias razões, em 2010, Portugal, a Grécia e a Irlanda perderam a credibilidade perante os investidores em títulos. Até ao momento, esses mesmos investidores nunca deixaram de acreditar na capacidade da Alemanha – e, já agora, na capacidade dos EUA: se somarmos ao défice federal, os défices estaduais, o passivo do Medicare e Segurança social (100 biliões), o crescente passivo das pensões dos funcionários públicos, a posição fiscal dos EUA era pior do que a da Grécia em 2009, com um rácio dívida/receita de 312%.

Isto pode mudar de um dia para o outro? Pode. Basta que os investidores percam a fé na viabilidade dos sistemas alemão ou americano. O mundo é governado pelo poder da sugestão.

Os mercados financeiros movem-se sob os efeitos do contágio e histeria e as novas tecnologias da comunicação reforçam e expandem dramaticamente esses efeitos. Talvez a leitura da obra de Jacques Charcot, fundador da psiquiatria moderna, que demonstrou a existência de uma conexão entre hipnose e histeria, nos possa ser mais útil à compreensão da “nova economia” do que o estudo de Keynes ou Hayek, cujas ideias e teorias me parecem datadas e desfasadas do admirável mundo novo em que vivemos.

12 comentários:

  1. “está em violação do Tratado de Maastricht e já o está há mais um ano do que Portugal: já tem um rácio de dívida pública-PIB superior a 60% desde 2003.”

    Se olhares para o défice orçamental, concluirás que com a excepção de 1999 e 2007, Portugal esteve sempre em violação do limite dos 3%.

    De qualquer forma, a implicação que retiro destes vossos textos é que a Alemanha devia estar a ter uma política contraccionista bastante mais violenta, certo?

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    1. Não era aí que queria chegar, Luís. A prova de que a Alemanha não de uma "política contraccionista bastante mais violenta" é o facto dos investidores confiarem na capacidade do país e lhe continuarem a emprestar dinheiro a juros baixíssimos. Mas a Alemanha já fez ajustamentos fortíssimos no passado e foi um governo do SPD, chefiado por Gerhard Schröder, quem os levou a cabo.

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    2. Eu tenho dificuldades em perceber onde tu e a Rita querem chegar.
      Para mim, a única coisa relevante é esta: "Mas a Alemanha já fez ajustamentos fortíssimos no passado e foi um governo do SPD, chefiado por Gerhard Schröder, quem os levou a cabo."

      Ou seja, nos anos de incumprimento identificados pela Rita, a Alemanha reagiu fazendo a correcção que se impunha. Parece-me que isto é uma excelente explicação para a percepção que os investidores têm de que podem confiar na Alemanha. Não me parece que seja necessário recorrer à psiquiatria para explicar isso.

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    3. Acho que resumes bem a coisa. Sobre a utilidade da psiquiatria, bem, acho que há muita histeria e efeitos de contágio nos mercados financeiros e, por isso, parece-me que o Charcot poderia ser útil a explicar esses comportamentos.

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    4. Não implica nada uma política contracionista violenta, pois também se pode dizer que a Alemanha devia seguir uma política mais agressiva de crescimento. Basta que o PIB aumente mais rapidamente para que eles tenham melhores rácios.

      O Zé Carlos levanta exactamente o ponto que eu queria ilustrar: a Alemanha é um gigante com pés de barro. Será que se os investidores se virarem contra ela assim como se viraram contra os EUA em 2008, a Alemanha tem força para resistir? Os EUA tinham, na altura, margem de manobra na política monetária e a economia americana depois de estabilizar está a crescer a boas taxas; a Alemanha, que para todos os efeitos não sofreu nenhuma crise interna não consegue gerar inflação nem crescimento significativo mesmo estando quase em pleno emprego e tendo acesso a uma política monetária super-expansionista. Para além disso os EUA têm um rácio de impostos-PIB de menos de 18%, mas a Alemanha tem um rácio de 45%. OS EUA tinham uma geração de reformados extremamente bem capitalizados que absorveram parte do choque da crise; os reformados alemães dependem muito mais da Segurança Social.

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    5. "Não implica nada uma política contracionista violenta, pois também se pode dizer que a Alemanha devia seguir uma política mais agressiva de crescimento. Basta que o PIB aumente mais rapidamente para que eles tenham melhores rácios."

      Rita a hipótese de aumentares o défice de tal forma que o crescimento aumenta tanto que o rácio da dívida pública cai é um hipótese violenta. E se até consegues encontrar argumentos para numa ou outra situação específica dizer que o multiplicador da despesa é assim tão elevado (para isto se verificar teria de ser para aí 2), de certeza que já conseguirás argumentar que isso se verificaria o número de anos seguidos para passar de mais de 75% para 60%.
      De resto, mesmo como efeito de curto prazo, terias muitas dificuldades para dizer que o multiplicador era muito maior do que zero. Lembra-te que a Alemanha está numa situação de pleno-emprego, ou melhor, que a Alemanha está com desemprego baixíssimo.

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  2. Eu não colocaria os EUA no mesmo plano que a Alemanha - penso que a taxa de juro norte-americana nunca pode ser muito diferente do que o FED queira que seja, de forma que, mesmo que os investidores percam confiança, suponho que os juros só poderão subir muito se o FED achar que há perigo de inflação (é verdade que essa perca de confiança pode ela própria originar inflação, via desvalorização do dólar, mas creio que mesmo assim não é uma situação do mesmo tipo que os países da zona euro)

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    1. Também acho que a situação dos EUA é diferente e, talvez devido a essa percepção por parte dos credores, ainda não tiveram problemas de financiamento, ao contrário de Portugal, Grécia, etc. Grande parte da dívida pública americana é a bancos chineses e, por isso, os juros não dependem só da FED

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    2. "Grande parte da dívida pública americana é a bancos chineses "

      Isso é mesmo verdade, ou é uma espécie de mito urbano?

      De qualquer forma, nem sei se isso será muito relevante, quem possui a dívida - se o FED fixar como objetivo atingir uma dada taxa de juro de curto prazo (e creio que é isso que atualmente é feito), comprando dívida quando a taxa de juro está acima do objetivo, isso fará, creio eu, que a taxa de juro de curto prazo seja efetivamente aquela que o FED quer, seja qual for a perceção do mercado; é verdade que a maior parte da dívida é de longo prazo, mas penso que é natural que o juro de longo prazo seja largamente determinado pelas expetativas sobre a evolução dos juros de curto prazo, podendo assim o FED controlá-las indiretamente.

      Agora se o FED fixar como objetivo atingir um dado cambio para o dólar, aí sim, uma quebra da confiança originará um aumento dos juros (a quebra da confiança origina desvalorização do dólar, e para defender o dólar o FED tem que subir os juros) - e, claro, há a tal questão da inflação.

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    3. Cerca de um terço da dívida americana é detida por estrangeiros: a China tem menos de 10% da dívida (cerca de $1,3 biliões em 2013) e o Japão tem menos (cerca de $1,1 biliões) do que a China. Em 2013, a dívida americana era de $16,8 biliões.

      Nota: estou a usar a escala longa; pela escala curta, os biliões são triliões.

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    4. Rita, obrigado pelos dados, pensava que a dependência em relação à China fosse maior, vejo que o Miguel Madeira tem alguma razão na sua chamada de atenção.

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