quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Uma verdade axiomática

A santidade da vida do cristianismo faz parte da herança hebraica. O hebraísmo já se havia distinguido claramente da atitude dos antigos, a saber: o desprezo pelas privações impostas ao homem pela vida no trabalho árduo; o costume de enjeitar os filhos indesejados; a convicção de que a vida sem saúde não merece ser vivida (de modo que na Antiguidade se considerava, por exemplo, que o médico desvirtuava a sua vocação ao prolongar a vida quando era impossível restaurar a saúde); a nobreza do suicídio quando alguém desejava abandonar uma vida flagelada.

O cristianismo foi mais longe do que o hebraísmo. Por exemplo, o homicídio no Decálogo, por comparação com outras transgressões, não assume a importância que hoje lhe atribuímos - curiosamente, para os cristãos, o suicídio é um pecado ainda mais grave do que o homicídio.

Os danos causados pela dúvida cartesiana ao cristianismo foram devastadores. Talvez em nenhum outro sector a dúvida cartesiana se mostrou mais destrutiva. Como explicou Max Weber, a perda da “certeza da salvação” (da certeza, não da crença) é constitutiva da era moderna - e esta foi apenas uma das várias certezas que se perderam, a “certeza da verdade” é outra, por exemplo.

Apesar dos efeitos da dúvida cartesiana, a vida continuou a ser um bem supremo na era moderna. Durante séculos, nem os mais ousados e radicais críticos do cristianismo se atreveram a colocar em questão esta “verdade axiomática”. Não admira que continue a ser tão difícil discutir a eutanásia. Até que ponto se justifica manter alguém vivo artificialmente, em dor e sofrimento, contra a sua própria vontade? O “Manifesto em defesa de uma morte livre” de Miguel Real é um contributo importante para essa discussão.

4 comentários:

  1. Eu espero que haja o recurso à eutanásia se eu chegar a precisar. É uma discussão importante...

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  2. Penso que a eutanásia (morte sem dor, de acordo com a sua origem grega) já é possível em alguns
    países. Pelo menos na Suiça é.

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    1. Sim, nos EUA é possível em alguns estados. Mas eu não quero viver nesses estados porque sofrem de falta de sol. Quero uma morte ao sol...

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  3. Sem a possibilidade de suicídio, assistido ou não, o direito à vida é, na verdade, também uma obrigação.

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