terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A pobreza como argumento de autoridade (actualizado)



Na resposta a uma (excelente) questão sobre liberdade e pobreza, Milton Friedman é interrompido por um palerma da audiência que pergunta gritando:
ALGUMA VEZ FOI POBRE?
Friedman, com a sua característica presença de espírito, responde que sim, que foi pobre. Mas, antes de continuar a resposta, acrescenta:
Mas sabe uma coisa? Isso é totalmente irrelevante. Será que se você tiver cancro vai exigir que o médico que o trate tenha tido cancro também?
Foi disto que me lembrei ao ler este lamentável artigo de Gabriel Mithá Ribeiro no Observador. Mithá Ribeiro parece ter aprendido com Friedman as políticas que defende. Pode ser que aprenda mais alguma coisa.

PS O episódio que relato desenrola-se entre os 3m50s e e os 4m30s do vídeo aí em cima.

Adenda
No twitter mandaram-me ler novamente o artigo de Mithá Ribeiro. E eu, feito estúpido fui ler. E ao ler, os meus olhos pararam nesta passagem: Nos tempos em que vivia no Vale do Jamor, nos anos oitenta, tinha um vizinho português branco que trabalhava, vendia ovos caseiros, tinha uma carrinha e condições de vida bem superiores às da minha família. O sujeito e respetiva família já lá viviam quando chegámos. Por lá continuaram quando, poucos anos depois, abandonámos a barraca (...) Quem sabe se aquela família, como outras, saiu de lá bem mais tarde, a custo e subsidiada aquando da requalificação urbanística da zona. 
Que asco.

13 comentários:

  1. Quando eu li a op-ed, lembrei-me do Outliers do Malcom Gladwell. Nesse livro Gladwell fala de um fulano, muito inteligente, mas que não conseguiu ter uma vida de sucesso. É um bocado presunçoso presumir que porque umas pessoas conseguem, todas as outras podem conseguir. A componente aleatória é muito forte no sucesso das pessoas.

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    1. Rita, nem vale a pena ir por aí. A maioria das pessoas que tem este discurso nem é capaz de perceber o papel da sorte. (Não sei é o caso do Mithá Ribeiro que não conheço.)

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    2. Não conheces a história do matemático que perguntou a um general o que era para ele um grande general? O general respondeu que alguém que tivesse conseguido ganhar 5 batalhas equilibradas consecutivamente era um grande general. De seguida, o matemático perguntou quantos grandes generais existiam. A resposta foi 3 em cada 100.
      O matemático respondeu então: está certo, 3% é mais ou menos a probabilidade de ganhar 5 vezes consecutivas na moeda ao ar.

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  2. Eu não conheço o Gabriel Mithá Ribeiro, apesar de lhe apreciar alguns artigos sobre educação. No entanto, e olhando para este artigo que escreveu, não me admira o mesmo nem me admira a sua posição sobre o assunto.

    Um dos grandes diferenciadores éticos entre os EUA e a UE (segundo a concepção original "social-democrata/democrata-cristã") é que os primeiros têm como ponto de partida o ideal do "sonho americano" enquanto os segundos a condição humana. Ora a ideia do sonho americano, que qualquer um consegue ter sucesso e ser feliz se trabalhar para isso, tem a igualmente lógica conclusão, das mesmas premissas, que quem não tem sucesso e/ou não é feliz não trabalhou (o suficiente) para isso. Por conseguinte, os pobres, os "desafortunados" são-no porque merecem, "brought it on themselves".

    Já no ideal europeu, pós-2ª Guerra Mundial, sem sonhos e muito menos ilusões, surgiu uma ideia aperfeiçoada de, por um lado, um estado social, assistencialista, que garantisse uma rede de apoio e dignidade a quem não a tivesse e, por outro, que a paz (intra- e inter-) Estados depende de um distibucionismo, não de forma abertamente coerciva (como no socialismo revolucionário), mas antes por interesse / dever mútuo de todos. Os pobres não "merecem" ser pobres - são-no por diversos motivos, inclusivamente azar.

    Isto tudo para dizer o quê: o Gabriel Mithá Ribeiro parece ter-se esforçado para chegar onde chegou e deve ter todo o mérito nisso. Mas se achar que parte ou grande parte desse sucesso se deve a ter tido alguma boa sorte, diminuir-lhe-á (aos seus próprios olhos) as conquistas que teve. Ele precisa de acreditar que conseguiu por ele e sem mais ninguém ou factores externos. E isso implica comungar do conceito de pobreza "merecida" a quem a tem.

    Como tenho dito a alguns amigos mais "políticos" (e o LA-C sabe que eu sou do CDS), já andei liberal por uns tempos mas passou-me - como na anedota do Lázaro. E passou-me quando, profissionalmente, passei a lidar com mais de 2 centenas de empresas. E vi e sei de pessoas que tinham muito e ficaram sem nada e vice-versa. Algumas vezes por culpa / mérito próprio, outras vezes por pura sorte e azar (clientes que faliram do nada, pessoas que morreram, encomendas urgentes em que tinham a sorte de ter podido satisfazer e agarraram "aquele" cliente, produtos que apareceram no mercado quando a procura surgiu e a concorrência era pouca, etc), mas a maioria por uma mistura dos dois factores. Eu não me acredito no sonho americano, porque ele, no fundo, não existe. Para cada sonho americano, haverá muitos que não se lembram do que sonharam e outros que terão pesadelos.

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  3. Até o Hayek, um dos pais do chamado "neoliberalismo" (apesar de já não ser assim tão "neo", o Hayek, escreveu o caminho para a servidão há mais de 70 anos), reconhecia o papel decisivo da sorte, que os antigos (até ao século XVII) chamavam de "fortuna". O sonho americano já fez sentido. Quando o Tocqueville publicou "Da Democracia na América" em 1835 (tinha o homem 30 anos) havia apenas 12 milhões de americanos (penso que também só eram 12 os estados nessa altura) e um mundo inteiro para desbravar, cheio de oportunidades e sem o peso da nascença (decisivo na Europa da altura e de agora) às costas. Eram outros tempos. Hoje, os EUA também têm a sua aristocracia financeira, política e empresarial e as oportunidades já não são iguais para todos

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    1. Caro JCA,

      O sonho americano faz sentido como isso mesmo: sonho ou objectivo. Não faz sentido absolutamente nenhum é como normativa ética.

      Quanto a Hayek e ao Caminho para a Servidão: passado 70 anos, viu-se. Só dá ditaduras socialistas na Europa e somos todos uma cambada de agrilhoados ao Estado. É interessante que o próprio corrigiu o tiro posteriorment com o Constitution of Liberty, que contém - aliás - a minha passagem favorita em que o Sumo Sacerdote do Liberalismo (como entendido pelos próprios) advoga um serviço de saúde universal. Posso discordar com algumas ou mesmo muitas coisas que Hayek escreveu, mas dou de barato que o dito cujo pensava pela própria cabeça e detinha todas as capacidades para tal.

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    2. Caro Carlos Duarte,
      Estamos de acordo. O Hayek foi um grande pensador, com uma enorme cultura, embora, confesso, não a fundo a sua obra. Parece-me um bocado radical. Por exemplo, ele, ao contrário do Friedman (outra referência, concorde-se ou não com as suas ideias), não acreditava na eficácia de qualquer política macroeconómica, para ele só a microeconomia contava. Mas, contra a maré, chamou a atenção para um problema que com o tempo se tornou mais evidente: a crescente dependência em relação ao Estado leva à servidão e à ditadura, ao despojar as pessoas da sua autonomia e gosto pela liberdade. Curiosamente, esse era o grande problema que Tocqueville anteviu com enorme antecedência. A democratização, que ele achava inevitável alastrar à Europa como alastrou, a ditadura da maioria, traria também um Estado cada vez mais paternalista, que, em nome de boas causas, se intrometeria cada vez mais na vida das pessoas. Ele via a religião e o associativismo como dois antídotos possíveis contra essa sufocante ditadura da maioria

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  4. O texto do Gabriel Mithá Ribeiro é realmente infeliz, se bem entendi o senhor, só tem autoridade moral para falar de pobreza quem já foi ou é pobre. Isso é um disparate sem nome, que nem merece comentário. No fim do texto, ele refere uma crónica notável do VPV e, por aí, sim, também me mete impressão o aproveitamento político descarado da miséria da alheia por parte de alguns políticos para ganhar votos, como se eles, vá-se lá saber porquê fossem moralmente superiores e os outros, o governo em concreto, são maus e insensíveis porque há listas de espera nas urgências ou porque falta um medicamento qualquer e a vida não tem preço, etc. Este tipo de discurso demagógico é realmente deplorável

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  5. Um discurso demagógico que pretendia ser contra a demagogia.
    Um discurso que pretendia ser contra a autoridade moral dos que falam na pobreza e nos pobres mas que acaba por se centrar na autoridade moral do próprio e das suas circunstancias para falar de pobreza e dos pobres.
    Mas, caro LAC, o retrato pungente, auto compassivo abre espaço para a dimensão aleatória da vida, apesar de louvar enaltecidamente o esforço, a vontade e a estrutura cultural tenaz e civilizadora.

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  6. Penso que o Justiniano resumiu bem o episódio: "Um discurso demagógico que pretendia ser contra a demagogia.". É exactamente isso.

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    1. Claro! O caro LAC é avisado!! Como é evidente a odiosa está no ónus moral constituendo!! Mas o mais interessante é que o inverso contém um ónus moral constituído. Digamos que o cronista se emancipou do ónus constituído mas é incapaz de dirimir a aversão pelo ónus constituendo!!
      Resume-se em que o poema ficou a meio do discurso político. Logo, a pobreza e os pobres vão continuar no léxico do discurso político umas linhas acima da justiça social.

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