sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Por enquanto, na terra do sarampo...

Discute-se vacinas por aqui. É surreal; sempre achei certas coisas acerca dos EUA muito estranhas, a história das vacinas é uma delas. No que diz respeito às coisas da saúde, prefiro Portugal mesmo com hospitais mal geridos aos EUA. Um dia contar-vos-ei porquê, mas hoje vou contar-vos das vacinas.

Eu tenho as minhas vacinas em dia de acordo com o calendário de vacinação de Portugal, excepto a vacina da gripe que não costumo tomar. Já tomei algumas vezes, mas não é uma coisa que me preocupe grandemente porque eu sou extremamente cuidadosa para evitar apanhar constipações e gripes e, como não tenho grande contacto com crianças, tenho um risco reduzido. Mas voltando às vacinas: quando eu estava no secundário, em Portugal, os meus testes da tuberculina começaram a dar positivos falsos e concluiu-se que não valia a pena eu fazer o teste e apenas fazia o raio-X. Um resultado positivo falso não é anormal, pois a vacina que a minha geração tomou, que é a vacina BCG, contém um bacilo vivo atenuado.

Durante o meu mestrado nos EUA, um dos meus colegas numa aula foi diagnosticado com tuberculose (ele era da Turquia) e, consequentemente, todos os alunos e professores que tinham aulas com ele tiveram de se submeter a um teste de tuberculina. Eu expliquei ao médico no Centro de Saúde da universidade que o meu teste dava positivos falsos e ele decidiu que era melhor eu fazer um raio X. A papelada toda foi para a direcção de saúde do estado de Oklahoma e o médico de lá disse que eu não podia esquivar-me ao teste. Então fiz o teste e--surpresa!!!--o resultado foi positivo. Obrigaram-me a fazer um tratamento qualquer, que causava retenção de água e me fazia sentir mal. Telefonei à enfermeira e disse que me sentia mal, ela disse para eu suspender o tratamento, mas para tomar bem conta de mim.

Quando eu pedi autorização para ser residente permanente nos EUA, tive de me submeter a um exame médico. Nesse exame, éramos obrigados a provar que não só tínhamos as vacinas em ordem, como tínhamos de fazer testes de doenças como sífilis, gonorreia, HIV, clamídia. Senti-me suja--não porque estivesse doente, mas por ter de mostrar que não estava, como se a presunção fosse que sim, eu estava doente e só os não doentes é que poderiam entrar. Era como se ser doente fosse ser um ser inferior. E achei ridículo ter de fazer tanto teste, pois eu estava nos EUA já há mais de cinco anos, logo era completamente irrelevante para a saúde pública americana testar-me apenas ao fim desse tempo e testaram-me porque eu iniciei o processo de residência, nem sequer foram eles que vieram à minha procura.

Agora discute-se o sarampo e as vacinas do sarampo nos EUA. Há candidatos a presidente que dizem que as pessoas deviam poder escolher vacinar ou não as suas crianças porque obrigar a vacinar infringe os direitos das pessoas. Só gente muito desligada da realidade tem noções destas relativamente a vacinas. Felizmente, a cobertura mediática tem sido muito boa, tem exposto o quão falaciosas são estas ideias e o público está a retaliar e estes candidatos têm de dar o dito pelo não dito.

É surreal os EUA gastarem dinheiro em África para educar a população acerca da importância de vacinas e em casa preocupam-se com não infringir as liberdades pessoais e o papel das vacinas deixa de ser fundamental para ser um de escolha pessoal. Em termos de saúde, os EUA são uma manta de retalhos. Não há uma noção clara de qual a estratégia que domina tudo isto. A liberdade religiosa e filosófica têm precedente sobre os interesses públicos, às vezes. E depois há os mercados, a obsessão pela eficiência dos mercados na saúde--mas disso falo noutra altura. Só quando as pessoas começam a morrer ou a ficar doentes, é que se pensa realmente no que se anda a fazer.

Pois é, vocês vão dizer-me que Portugal está a tornar-se assim e está. A americanização da saúde em Portugal é alarmante. É pena porque os EUA são um péssimo exemplo e para se copiar alguém, mais valia copiar os franceses que, em termos de saúde, são o melhor do mundo. Mas copiar é feio, o ideal era ver o que de melhor se faz lá fora, o que de melhor se faz em Portugal, misturar umas ideias originais, e construir um sistema melhor do que o francês. Temos essa capacidade; apenas nos falta a vontade.

1 comentário:

  1. Basta ver o que aconteceu desde a introdução dos GDH's na Europa e em Portugal, onde se usa o sistema americano, ligeiramente adaptado... Financiamento hospitalar deficiente, crescimento da despesa, incentivos perversos de produção.
    Embora os Estados Unidos consigam ser tão diversos como a Europa, por exemplo entre um Minnesota e um Massachussets e um Alabama e Mississipi vai uma diferença abismal, mesmo em termos de indicadores de saúde, o sistema não é muito adequado a Portugal nem à prática em Saúde. A importação do modelo industrial de qualidade para a Saúde não tem em conta a natureza multiproduto e portanto os sistemas "científicos" como os GDH's condicionam a actividade duma forma cuja fiabilidade do próprio sistema não o garante.

    Quanto a esses devaneios naturalistas... Não nos podemos nunca esquecer que se hoje em dia vivemos até aos 80( as mulheres portuguesas sim, os homens coitados, não conseguem tanto) tal se deve a 3 factores essenciais: a melhoria das condições sócio-económicas, à água potável( e maior higiene) e à VACINAÇÃO. Só se não a tivermos é que perceberemos o quão perverso é esta questão da liberdade individual... até porque um "gajo" com tuberculose é também um perigo para terceiros,,,,

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