sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Seios vs. Mamas

No meu último post, "Acerca de Lingerie" um dos nossos simpáticos leitores, sugeriu que eu devesse usar a palavra "mamas" em vez de "seios", pois era mais correcta do ponto de vista da anatomia. Identifico aqui uma divergência entre a forma como eu escrevo e a forma como as pessoas pensam que eu deveria escrever. Talvez isto se deva ao facto de eu ter sido casada com um jornalista e muitas vezes assisti a e participei em conversas acerca do que é uma notícia e o que é um peça de opinião e o que deveria ser o estilo de escrita de uma e de outra. Eu aqui escrevo peças de opinião e, por isso, não me limito a relatar a mecânica dos factos e dos acontecimentos, pois dou-vos acima de tudo a minha perspectiva, que vocês são livres de considerar ou não. A outra consequência de isto ser a minha opinião é que eu posso escrever de forma muito mais íntima e posso construir muito mais camadas de informação que alguns de vós irão captar, outros não. Um amigo meu costuma dizer que eu "não dou ponto sem nó".

Comecemos por dissecar o título do último post, "Acerca de lingerie". O que é lingerie? É um tipo de roupa interior feminina. Se fôssemos a construir um diagrama Venn, veríamos que o conjunto da lingerie está totalmente contido no conjunto da roupa interior, mas não é o mesmo conjunto, ou seja, toda a lingerie é roupa interior, mas nem toda a roupa interior é lingerie. O que é que distingue a lingerie da outra roupa interior? A lingerie é roupa interior que é mais sensual e, quando uma mulher a usa, ela sente-se mais sexy, mais especial. Quando eu vos dou este título, estou implicitamente a dizer que quero construir um post mais para o sensual do que para o funcional. No post eu usei a palavra "seio" porque estava a reforçar o espírito do que eu queria transmitir. Não é anatomicamente correcta, mas eu não vos queria dar uma visão totalmente funcional do corpo de uma mulher.

Eu não tenho grande carinho pela palavra "mamas" porque não cria no meu cérebro ideias que me dão prazer--eu sou extremamente hedonista. A verdade é que eu não escrevo para vós; eu escrevo para mim porque me dá prazer. Ou como diz a Erica Jong, eu escrevo para "seduzir o meu demónio". "Mamas" tem conotações que não são sensuais: cancro da mama é uma coisa que assusta, dar de mamar a um bebé não é um acto sensual, fazer uma mamografia--que eu vejo como sendo uma sanduíche onde se recheia duas placas com uma mama--é chato e doloroso para mim, ir na rua aos 15 anos e ser assediada por homens que me dizem "Que belas mamas, chupava-tas todas!" não foi uma coisa que me tenha dado grande prazer, etc.

Vejam lá se isto vos dá prazer:

Parou de comer e fitou-o com uma expressão insinuante. «Sabe qual é a minha maior fantasia de cozinheira?»
«Hã?»
«Quando um dia for casada e tiver um filho, vou fazer uma sopa de peixe com o leite das minhas mamas.»
Tomás quase se engasgou com a sopa.
«Como?»
«Quero fazer uma sopa de peixe com o leite das minhas mamas», repetiu ela, como se dissesse a coisa mais natural do mundo.

José Rodrigues dos Santos, Codex 632

A mim não me deu nenhum. Até acho uma fantasia um bocado estranha para uma mulher, mas como eu não tenho fantasias muito estranhas, talvez a limitação esteja em mim.

Quando a minha professora da escola primária me ensinou a escrever, ela deu-me algumas regras básicas, que incluíam "Não sejas repetitiva na escolha das palavras que usas." e "Não inicies muitas frases da mesma maneira.". Suponho que o que ela estava a dizer-me era que eu devia prestar atenção ao som do que escrevia para que a minha escrita não fosse monótona. Eduardo Prado Coelho, em "A Razão do Azul", lamentava-se de as pessoas terem deixado de ligar à poesia e, hoje em dia, haver uma clara predilecção pela ficção. Na poesia, o som que as palavras têm e o seu ritmo são extremamente importantes. Nós somos acima de tudo um país de poetas, a meu ver; mas ultimamente o Portugal que os outros imaginam e o Portugal que eu imagino são coisas muito diferentes. Mas voltemos à escrita. Há alguns escritores--não poetas--cuja escrita tem um ritmo e uma sonoridade extremamente evocativa, como é o caso de Laura Hillenbrand, mas são raros os que o conseguem. Para mim o som das palavras, os movimentos dos lábios e da língua que fazemos ao dizê-las em voz alta são cruciais e, muitas vezes, quando leio algo que me agrada, recito-o em voz alta várias vezes para sentir o som a sair da minha boca e para que a memória de o dizer fique guardada no meu corpo para além de ficar na minha cabeça. Talvez isto se deva ao facto de eu passar grande parte do meu dia a falar inglês e, nas poucas oportunidades que tenho de falar português, talvez nem uma vez por mês, eu sinto a língua portuguesa no meu corpo.

A palavra seio é, para mim, muito sugestiva de prazeres carnais, assim como o é usar lingerie. Comece-se pelo facto de seio e sexo serem palavras 75% parecidas: apenas uma letra em quatro é diferente. Os puristas dir-me-ão que não têm a mesma raiz, nem sequer significados parecidos; mas, para mim isso é irrelevante, pois começam ambas com "s" e terminam com o som "u". Repararam que, quando criam o som "u" com a vossa boca, o franzir dos vossos lábios é parecido com o franzir que fazem quando se preparam para dar um beijo a alguém? E o "s" que é uma letra de forma sinusoidal, tal como a parte de trás do corpo de alguém nu, que visto de perfil cria um longo "s"? Por fim há o som do "s" e nós em português somos ricos em palavras que pintam imagens na nossa cabeça: o seio, o sexo, a sedução, a sensualidade, a sensação, o sentir sede da boca de alguém, o sabor do sal do corpo do outro na nossa língua... Ler "Os Maias" com Carlos a pensar nos seios de Maria Eduarda dá-nos uma sensação completamente diferente da que teríamos se ele pensasse nas suas "mamas":

"A sua resistência a uma noite de amor, prolongando-se assim, ameaçava ser grotesca: ao mesmo tempo o calor de voluptuosidade que emanava daquele seio, arfando junto dele e por ele, ia-o amolecendo lentamente."

Eça de Queiroz, Os Maias

Mas não fiquemos por aí. A Rosa Lobato de Faria escreveu um poema extraordinário, "Primeiro a tua mão sobre o meu seio", onde o seio é o princípio e o fim da acção--notem o uso da palavra roçar, que também tem o som "s".
Primeiro a tua mão sobre o meu seio

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.
Depois o pé - o meu - sobre o teu pé.
Logo o roçar urgente do joelho
e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.
É a linha do dorso que se inscreve.
A mão agora impõe, já não embala
mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.
A boca exige: quer mais sal, mais morno.
Já não há gesto que se não invente,
ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.
É todo o mar que inunda a nossa cama.
Afogados de amor e de nudez
Somos a maré alta de quem ama

Por fim o sono calmo, que não é
Senão ternura, intimidade, enleio:
O meu pé descansando no teu pé,
A tua mão dormindo no meu seio.

Rosa Lobato de Faria, Cem Poemas Portugueses no Feminino

Alguns de vós agora devem estar a pensar que é estranha toda esta produção linguística; será que quando um homem está a ter sexo comigo ele apenas fala em seios, não fala em mamas? É claro que fala em mamas (se for português e se gostar de falar durante o acto), mas nessa altura o que me dá prazer não é apenas o que ele me diz, é também o que ele faz: o que me dá prazer é tê-lo dentro de mim, no seio do meu corpo.

P.S. Obrigada ao LA-C pela sugestão do texto do José Rodrigues dos Santos.

8 comentários:

  1. Apesar de ter ficado tão traumatizado com a passagem do livro do Rodrigues dos Santos que nunca mais a esqueci, eu sou pelas mamas.

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    1. Obrigadinho, ò LA-C! Já me tinha esquecido da pérola literária... agora tenho de arranjar líxivia mental.

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    2. Que generoso, Luís! Decidiste partilhar o teu traumatismo comigo e eu fiz o favor de o lançar ao vento. Por acaso tenho esse livro em inglês mas ainda não peguei nele para o ler. Suponho que traduziram mamas como "breasts"--não dá a mesma sensação.

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  2. Pelo que diz, as cuecas de senhora produzidas por uma fabriqueta no norte de Portugal e todas destinadas à exportação para a Holanda, não podem ser consideradas "lingerie". Digo isto porque são fabricadas com resíduos de algodão, num tecido sobre o grosso, tipo flanela, em tamanhos XXL; além disso, são descartáveis.
    Ao que me dizem, trata-se de um nicho de mercado muito especial, constituído por senhoras de uma certa idade, que sofrem muito com o frio. Pensava eu que essa gente também tinha o direito de usar "lingerie", mas, pelo que vejo, tal lhes está vedado. Discriminização?

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    1. Eu não usei o tipo de material para identificar lingerie. Eu disse que lingerie são as peças que fazem uma mulher se sentir especial, sexy. Cuecas descartáveis não me fazem sentir sexy, mas se há mulheres que se excitam com isso--e quem sabe, homens--eu não tenho nada a opor, especialmente se contribuem para as exportações portuguesas.

      O tamanho é irrelevante: as portuguesas querem-se pequeninas como a sardinha, logo é normal que o que elas vestem seja mais pequeno do que as holandesas de 1,90 m. Ou tu achas que mulheres que vestem XXL não podem ser um poço de sensualidade onde muito boa gente se afunda?

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    2. Rita, fiquei sem palavras com o seu desafio. O meu comentário não passou de uma brincadeira. E, sim, acredito que há mulheres muito elegantes que vestem XXL e que são "um poço de sensualidade", Muito maior do que algumas outras que não passam muito além dum monte de ossos...

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    3. Acho que é a doutrina do Supremo Tribunal Administrativo...

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  3. "Recito-o em voz alta várias vezes para sentir o som a sair da minha boca". Rita, anatomicamente, o som que ouves é o que ecoa na caixa craniana, não o que sai da tua boca. :P

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