sexta-feira, 10 de junho de 2016

Doem-me os pés

Em 1922, Walter Lippmann, um autor americano muito pouco conhecido em Portugal, publicou um livro intitulado Public Opinion, no qual atribui um papel fundamental aos especialistas (experts). A realidade é demasiado complexa para um público que se limita a ler os jornais meia hora por dia. Os cidadãos tomam decisões baseados exclusivamente em estereótipos (generalizações e hipersimplificações da realidade) fabricados pelos mass media. Para atenuar o problema, Lippmann preconizava a participação dos especialistas no debate público. Seria a única maneira de manter os estereótipos do público em linha com a realidade.
Três anos depois, publica The Phantom Public. O pessimismo de Lippmann agudiza-se. Parece ter perdido a sua fé nos experts. Estes dominam apenas um assunto muito específico e as suas teorias e descobertas são demasiado intrincadas e esotéricas para o leitor casual de jornais. Agora, a distinção fundamental já não é entre os especialistas e os amadores, mas entre os insiders e os outsiders. Apenas o insider pode tomar decisões. Não porque seja melhor do que os outros, mas porque está colocado numa posição que lhe permite compreender e agir. O outsider é necessariamente ignorante e frequentemente irrelevante. Tenta muitas vezes navegar um navio em terra seca. É por esse motivo, acrescentava Lippmann, que vemos cientistas brilhantes, escritores e artistas geniais, empresários eminentes a fazerem comentários políticos absolutamente ridículos, sem nenhum sentido. Saíram da sua área de competência e a competência existe apenas em relação com a função. Ninguém é bom tout court; quando muito, é-se bom nalguma coisa.
Ao público, incapaz de argumentar, com um ou outro interesse ocasional, sem nenhum apetite por teorias, Lippmaan destinava, mesmo assim, um papel importante. O público chegaria a meio do terceiro acto e sairia ainda antes do final da peça. Ficaria apenas o tempo necessário para decidir quem eram os heróis e os vilões da história. Identificar os vilões, eis o papel que lhe cabia e para o qual devia ser treinado. Os corruptos, os demagogos, os manipuladores das massas, os dissimuladores, que tentam fazer passar os interesses pessoais ou de grupo pelo bem-comum. Quando Lippmann escreveu os seus livros, não havia internet, nem televisão e a rádio estava a dar os seus primeiros passos. Hoje, Lippmann diria, com certeza, que a realidade confirmou todo o seu pessimismo. Pior ainda: o povo identifica vilões, mas, muitas vezes, não aquele tipo que Lippmann desejava. Os vilões das redes sociais são o Henrique Raposo, o Nuno Markl ou o José Cid, etc..
John Dewey, contemporâneo de Lippmann, e também pouco estudado em Portugal, tinha mais fé na humanidade. Verdade que o público estava apático, amorfo, desorganizado. As antigas comunidades do século XIX, em que todos se conheciam uns aos outros, foram desintegradas pela modernização e industrialização. O vapor e a electricidade trouxeram a Great Society, mas não criaram uma Great Community. E sem comunidade não há democracia (uma implica a outra), nem público, argumentava Dewey. O público estava num estado de eclipse. Todavia, Dewey, ao contrário de Lippmann, acreditava que era possível tirar o público das sombras. A grande solução seria mais e melhor comunicação. Os cientistas, os investigadores deviam apurar a técnica de apresentação das suas descobertas, de modo a que o público pudesse compreender o que estava em jogo.
Dewey rejeitava por completo um governo de especialistas. Seria um governo, uma tirania, ao serviço dos interesses de alguns. Uma versão moderna da utopia de Platão, em que os filósofos eram reis e os reis eram filósofos - um pesadelo, portanto. Quando há um problema com os nossos sapatos, são os especialistas que, eventualmente, o podem resolver. Mas só o povo pode dizer onde é que lhe doem os pés. Dizer, alto e em bom som, onde é que nos doem os pés é o mínimo (e, às vezes, o máximo) que cada um de nós pode e deve fazer.

3 comentários:

  1. Este texto, todo ele muito bom, contém, na sua parte final, e segundo o meu conhecimento actual, uma das melhores defesas da democracia, em todos os tempos - saliento este ponto, porque, em Portugal ainda não está bem aprendida. Costuma dizer-se que é por ser uma democracia jovem. É falso. É apenas porque a democracia não tem sido bem ensinada.

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    1. Muito obrigado pelas suas palavras simpáticas. Concordo: a democracia não tem sido bem ensinada e a passividade é das maiores ameaças à democracia. John Dewey é uma grande referência e, para ele, a democracia não era apenas institucional, não era apenas uma forma de governo, era uma forma de vida, que devia ser cultivada todos os dias.

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  2. Caro José Carlos Alexandre, obrigado por nos recordar estes conceitos de Lippman. Com os quais concordo. Indo mais longe, com o cada vez maior conhecimento e saber existentes, mais necessários são os especialistas e mais distante fica a capacidade do cidadão médio para apreender duma série de conceitos. Não é casualidade que o saber ensinado nas faculdades tem vindo a especializar-se cada vez mais e mais e mais sendo hoje muito fino. Há tanto para saber sobre cada coisa em particular que nas sociedades há cada vez menos lugar para os generalistas.

    Pegando agora na sua última frase, aprecio-a particularmente embora tire dela uma conclusão diferente - não necessariamente antagónica - à tirada pelo comentandor antecedente. É muito certa tanto quando diz que só cada um pode dizer onde lhe doem os pés como na parte - que enfatizo - onde é dito que apenas os especialistas podem resolver a dor. E daqui decorre, naturalmente, que é fácil dizer quais os problemas e o que aflige a cada um mas resolver essas aflições só aqueles que são especialistas no ramo do saber que lida com essa aflição podem fazer. É precisamente por isto que sou assumidamente elitista e defendo para os governos das Nações os melhores, a mais fina nata duma sociedade, aqueles que têm mais saber, maior curriculo, maior sucesso e maiores realizações no seu passado. Trata-se essencialmente de cada um fazer a si próprio uma pergunta; Quem gostaria eu que gerisse os meus teres e haveres?

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