quarta-feira, 25 de maio de 2016

Coisas esdrúxulas 34

Num cão ganindo reconheceu Pitágoras, o da coxa dourada, a voz de um finado amigo. Não porque falasse com animais e plantas, ainda que o fizesse. Nem porque praticasse artes mediúnicas, ainda que filho de Apolo, dizem, fosse.  Verdadeiro como a Pítia, Pitágoras sabia não apenas quem era mas quem fora. Viveu várias vidas, foi várias pessoas, de todas se lembrava com minúcia. Lutou na guerra de Tróia antes de descobrir que tudo é número. Regateou nos mercados gregos antes de percorrer o Egipto. Ocupou-se como cortesã, e bela, antes de ouvir a música das esferas. Não lhe terá, pois, custado deixar morrer de fome o corpo, outra vida esperaria, outra identidade. Uma vida terrena ainda, não galáctica, com um nome, um rosto, um sexo e uma actividade, vólucres embora. Talvez um lobo, bicho antagónico. Ou uma fava, à mesa interdita. Bípede ou quadrúpede, animal ou vegetal, lembrar-se-á Pitágoras de ter sido Pitágoras e ser nesta hora em que se lembra outra coisa. Saberá que já não é Pitágoras, o da coxa dourada, e que o Pitágoras que foi é agora um teorema apócrifo.

6 comentários:

  1. Muito bom. E com o bónus de ter aprendido uma palavra nova, coisa que não acontece todos os dias. Grata.

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    1. Grata eu, pelo comentário. E qual foi a palavra nova?

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    2. Aaaahhh... Não adivinha? Vólucre! Felizmente o google é amigo...

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    3. :-D pensei que seria essa, sim! Aprendi com o Ricardo Reis: "as rosas amo dos jardins de Adónis, essas vólucres ..."

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    4. Bem me parecia que devia ler mais... ;-)

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  2. Em que "vida" terá Pitágoras aderido à "Santa Tetraktis"? O cão deve ter ganido bastante nesse período! :-)

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