quarta-feira, 18 de maio de 2016

História gótica



67. Há homens que morrem muitas mortes e um destes foi Toríbio Ortega, camarada e homem de armas  de Pancho Villa.
Ainda criança, correram rumores da sua morte no pequeno povoado onde os seus avós e os seus pais sempre tinham vivido sem conseguirem ir além de uma cabana de tijolos de barro e telhado de palha. Toríbio lembrava-se de uma bisavó de madeixas claras e sotaque colonial que lhe contava histórias de laranjeiras e cruzes de prata em igrejas onde dezenas de pessoas acompanhavam em coro a celebração das missas, e histórias de homens e mulheres ambiciosos que atravessaram um oceano inteiro para enriquecer no novo mundo. Mas a vida da família que sucedeu a essa geração de gente orgulhosa e dura era a vida do chão de terra batida da casa pequena onde Toríbio nascera. Quando os avós e os pais da criança não estavam por perto, a bisavó sussurrava-lhe as suas explicações do fracasso dos andaluzes, que tinha sido a mistura do sangue europeu, aristocrático e apurado por séculos de civilização, com sangue nativo a amolecer estes herdeiros mais índios do que conquistadores. Os antepassados de Toríbio, insistia a bisavó, eram da cepa dos Cid que derrotaram mouros inimigos da cristandade, violadores de mulheres e assassinos de frades, e dos Lancelotes que fizeram a reputação nobre dos celtas do norte e que eram a fonte dos seus cabelos loiros e pele clara. A história da família anterior àquela que Toríbio conhecia fora uma história de violência e coragem, mas também de divisões e domínios que à criança causavam já sentimentos contraditórios quanto à sua origem distante. E quando a bisavó morreu, os hábitos indolentes e pacíficos dos familiares fizeram com que esquecesse o que havia para além da pampa e dos cavalos a que era preciso matar a sede. Os rumores da sua morte começaram alguns meses depois do desaparecimento de Toríbio durante uma feira de gado num povoado próximo. Antes de se pensar em morte pensou-se numa queda num poço, ou em rapto, mas quem levaria uma criança feia e magra como Toríbio ninguém conseguia adivinhar. Os rumores dissiparam-se passado pouco tempo, já que o desaparecimento de crianças não era um evento extraordinário. Os pais e vizinhos pareciam espantar-se mais com a chegada dos filhos à idade adulta sem acidentes do que com o extravio e o óbito. Toríbio foi esquecido. Reapareceu longe do povoado natal, na caserna de um quartel situado numa cidade. Disse-se que se tornara um jovem garboso e de corpo forte, tão diferente do que tinha sido em criança que havia quem jurasse que não se tratava da mesma pessoa. E mais uma vez a morte chegou para Toríbio, desta vez sob a forma e a fama de uma emboscada. A terceira morte acontecera durante uma epidemia de tifo, era Toríbio um médico abnegado e salvador dos pobres. E a quarta teria sido o suicídio do jovem que vê a sua amada no altar com o rival. Houve mortes simultâneas, como aquela que Toríbio morrera ao atravessar a nado um rio tormentoso ao mesmo tempo que a cem quilómetros morria uma morte de apoplexia durante um jantar de excessos e boémia. Morreu mortes de duelos, e mortes de acidentes de caleches, mortes de apostas temerárias e de apostas perdidas, mortes de equívocos e mortes de certezas. De algumas mortes sabia-se apenas que tinha morrido. Por isso não era também segura a morte derradeira que se lhe atribuía, a morte que morreu fuzilado contra uma parede branca manchada de vermelho, e tendo recusado a venda com a qual apenas os cobardes morrem.

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