quinta-feira, 26 de maio de 2016

Hitler também era um keynesiano

Parece que o jornalista/ficcionista José Rodrigues dos Santos andou por aí a dizer que o” fascismo é um movimento de origem marxista”. Para comprovar o absurdo da coisa, Paulo Pena fez no "Público" " uma “prova dos factos”. O jornalista invoca o historiador Tony Judt: podemos falar de marxistas começando com conceitos; o fascismo não tinha conceitos, mas sim atitudes. Pena não nega algumas coincidências que podem gerar confusão. Relembra que Mussolini foi militante do partido socialista italiano e editor do jornal marxista Avanti! até ser expulso e fundar em 1919 o embrião do partido fascista. Não referiu, mas também podia ter referido, por exemplo, que NAZI é uma abreviatura de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Mas deixemos estas coincidências. Demos por adquirido que os dois movimentos, apesar das vidas paralelas e das sobreposições, são de facto distintos.
Na verdade, o que me chamou mais a atenção no texto de Paulo Pena foi o seu penúltimo parágrafo, em que cita Hitler para mostrar uma “derradeira diferença” entre os dois movimentos: “O New Deal deste homem foi o maior erro jamais cometido por alguém... Num país europeu a carreira deste homem teria terminado num tribunal por desperdiçar o tesouro público, e dificilmente evitaria uma pena por gestão criminosa e incompetente.", afirmou o ditador nazi.
Não bate a bota com a perdigota. Primeiro, o que é que o Roosevelt e o new deal tinham a ver com o marxismo? Segundo, o new deal era, isso sim, keynesianismo, apesar de Keynes ter publicado a sua Teoria Geral do Emprego posteriormente, em 1936. Terceiro, o discurso de Hitler não é coerente com a sua política efectiva, porque também ele foi um keynesiano avant la lettre. Em 1933, no tempo que John Maynard Keynes ainda não tinha realmente afinado a sua teoria do deficit spending, Hitler compreendeu que, para combater a depressão, uma das funções do Estado é a de consumir para estimular a procura. O desemprego baixou drasticamente na Alemanha antes ainda das encomendas excepcionais à indústria de armamento, que só começaram em 1935. Hitler intuiu (não sabia nada sobre leis económicas) que a economia é tributária da confiança. Enfim, Hitler, junto com Roosevelt, foram dois keynesianos com sucesso.
Numa palavra, Paulo Pena arranjou um péssimo exemplo para ilustrar as diferenças entre marxismo e fascismo.

8 comentários:

  1. Caro José Carlos Alexandre, indo já para além da questão sobre se o nacional-socialismo foi uma forma de fascismo ou se foi algo numa categoria por si só, ao ler o seu artigo não pude deixar de lembrar-me duma frase de Mussolini sobre o assunto. Não consigo citar inteiramente de memória mas era algo do género "Nós sómos conservadores e liberais, reaccionarios e revolucionarios" e seguia com mais umas deste género para terminar dizendo "dependendo do momento, lugar e situação". Esta frase de Mussolini retrata bem o que era a ideia económica do fascismo: adaptabilidade. Sei que a letra, tanto da doutrina fascista italiana como da Falange em Espanha como também do NSDAP, como até mais modernamente do Pinochetismo, diziam o que diziam e não era sequer coincidente entre todas. A practica, porém, em todos os totalitarismos de direita (faz-me alguma confusão chamar-lhes fascistas a todos por igual dado terem sido muito diferentes) foi o pragmatismo em política económica. Foram-se fazendo as coisas consoante as circunstancias e as necessidades de cada momento e, precisamente por isso, há marcadas diferenças nas políticas económicas seguidas por regimes totalitários de direita no mesmo momento histórico e até mesmo dentro dos próprios regimes consoante as épocas. As políticas económicas de Portugal e Espanha foram totalmente diferentes, algo que advinha das diferentes concepções de país que tinham o Dr. Salazar e o Generalíssimo Franco, como, em Espanha, a política económica foi evoluindo e, em 1958, sofreu uma mudança total cortando totalmente com os princípios anteriores. As circunstâncias a tal obrigaram e o regime, apercebendo-se do esgotamento do anterior, mudou totalmente e seguiu um caminho totalmente diferente.

    Esta, sim, parece-me ser, no campo económico - há muitas outras, vincadas, em diversos outros campos - a grande diferença entre marxismo e fascismo: Enquanto o marxismo tem uma doutrina económica dogmática, imutavel e, pela sua natureza de dogma, inerentemente correcta, o fascismo não a tem, nem sequer em termos teóricos, muito vincada. Quando atendemos à prática vemos que mesmo as generalidades da teoria são descartadas mal as necessidades o requerem. Vejo este aspecto como estando a par da questão economia estatizada versus economia privada embora reconheça que esta última tem implicações muito mais profundas na vida das pessoas individualmente, da sociedade como um todo e até políticas.

    Li o artigo do público e há um aspecto que penso ser muito diferenciador entre os dois regimes e não aparece lá escrito. A forma de repressão política é talvez o maior ponto de diferença entre marxismo e fascismo. O fascismo (sendo que aqui, a contra-gosto, lá uso a palavra com o significado lacto e aberto que vai tendo nos tempos que correm) reprimia apenas aqueles que abertamente iam contra o regime e, ainda assim, o conceito de "abertamente" foi sendo de geometria variavel consoante os países e as épocas num mesmo país. Em Espanha a repressão do imediato pós-guerra não tem comparação possivel com a que vagamente existia no tardo-Franquismo. Idealmente os governantes queriam é que as pessoas não se metessem na política e vivessem as suas vidas arredadas das questões que dizem respeito à governação. A repressão política nos comunismos foi o exacto oposto. O mero desinteresse era perseguido e os regimes comunistas, todos, queriam e forçavam as populações à aceitação expressa dos regimes. De resto esta repressão dos desinteressados tinha sido proposta e aplicada por Lenin logo desde que chegou ao poder. Esta forma de repressão por inclusão versus repressão por exclusão penso ser uma das diferenças mais marcantes entre comunismo e fascismo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Zuricher, sem dúvida que houve vários tipos de fascismo, e, como sabe, existe uma longa e interminável discussão sobre o que era o fascismo, quando, na verdade, até em Itália o fascismo teve várias fases. Limitei-me a seguir a definição genérica do Paulo Pena e não quis entrar nessa discussão filosófica. Todavia, há de facto coincidências ou sobreposições entre o marxismo e fascismo, nomeadamente um certo paganismo - esse é um dos motivos invocados por alguns autores para não classificarem, por exemplo o Estado novo de fascista, uma vez que Salazar era um produto da igreja católica, já para não falar na relação com as os movimentos de massas, que Salazar não apreciava. De qualquer maneira, todos esses movimentos, fascistas ou não, eram nacionalistas, e nesse ponto eram claramente diferentes do internacionalismo da esquerda marxista. Curiosamente, hoje, as coisas inverteram-se um bocado: vemos a esquerda mais "patriota" do que a direita. De qualquer maneira, o meu ponto neste post era sobretudo a questão do keynesianismo de Hitler.

      Eliminar
  2. "Li o artigo do público e há um aspecto que penso ser muito diferenciador entre os dois regimes e não aparece lá escrito. A forma de repressão política é talvez o maior ponto de diferença entre marxismo e fascismo. O fascismo (sendo que aqui, a contra-gosto, lá uso a palavra com o significado lacto e aberto que vai tendo nos tempos que correm)..."

    Se alguma coisa, é exatamente por aí que não se pode usar o termo "fascismo" de forma genérica - o conservadorismo autoritário (de Salazar, Franco, Dolfuss ou Pinochet) queria que as pessoas não se metessem em política; já o fascismo italiano e sobretudo o nacional-socialismo alemão recorriam à mobilização de massas, e no caso alemão seria provavelmente ainda mais repressivo que o regime soviético, por uma razão: perseguia pessoas por uma razão (etnia) completamente fora do seu controle - o regime soviético, sobretudo sob Estaline, poderia ter algumas inclinações anti-semitas, anti-ucranianas, etc., mas um judeu ou um ucraniano que fosse um defensor leal do regime poderia safar-se (por isso, aliás, é que é muito discutível que a fome ucraniana dos anos 30 possa ser considerada um genocidio - já que o alvo eram sobretudo as regiões onde tinha havido resistência à colectivização, sendo o facto de a maior parte dessas regiões ficarem na Ucrânia largamente incidental, tendo também havido episódios parecidos na Rússia); já um judeu ou um cigano na Alemanha nazi não tanto (mesmo os judeus colaboracionistas que foram para o campo de concentração de luxo de Thereseinstadt foram... para um campo de concentração).

    Há um texto de 1960, de Seymour M. Lipset, "Fascism - Left, Right, and Center" (ir aqui e procurar por "left, right, and center" ou "The return of De Gaulle to power in France in 1958 following a", tudo sem aspas), em que o autor diferencia exatamente entre o "radicalismo de direita" (como Franco ou Dolfuss, que só reprimiria a oposição ativa ao regime) e o "radicalismo de centro" (sobretudo Hitler - estando Mussolini a meio caminho entre o centro e a direita - que, pelo menos nos regimes que subiram ao poder, exerceria um muito maior controle sobre a sociedade; a teoria é que era um extremismo de micro-empresários, ameaçados tanto pelo colectivismo como pelo grande capital, e que por isso queriam mesmo fazer uma espécie de revolução social).

    ResponderEliminar
  3. Agora (e reconhecendo a pouca relevância do ponto para o marxismo ou não-marxismo do fascismo) creio que pode haver uma justificação para Hitler chamar Roosevelt de incompetente - dá-me a ideia (via uma busca no Google - se calhar uma pesquisa mais aprofundada daria um resultado diferente) que, mesmo com o aumento da despesa pública, Hitler reduziu o deficit enquanto creio que Roosevelt o aumentou (e a economia, pelo menos até ao começo da II Guerra, não cresceu tanto como a da Alemanha).

    Usando o anacronismo de analisar as politicas de um e de outro em termos modernos, ambos deslocaram a curva AD para a direita, mas se calhar as diferentes politicas sindicais (ainda que com algumas semelhanças formais) tiveram efeitos diferentes sobre a curva AS - ao reforçar o poder dos sindicatos, Roosevelt deslocou a AS para a esquerda (o que pode ter contrabalançado parte do efeito das politicas sobre a procura); já Hitler, ao por os sindicatos sob controlo do Estado, provavelmente deslocou a AS para a direita (amplificando o efeito das politicas sobre a procura - o que pode explicar maior crescimento com menos deficits); e, voltando à polémica original, se calhar essa diferença entre as naturezas de classe do "new deal" e do nazismo possa realmente ter alguma coisa a ver com a questão da influência ou não influência marxista sobre o fascismo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, o new deal levou a um endividamento dos EUA e era isso que Hitler criticava. Na realidade essa até era a política keynesiana por excelência: política orçamental expansionista financiada por empréstimo. De qualquer maneira, insisto, o que é que a política de Roosevelt tinha a ver com o marxismo? Quer dizer, havia marxistas na sua administração ou que a apoiavam,logo isso fazia de Roosevelt ou da sua política marxistas? Esse parece ser o argumento do paulo Pena no Público, o que é completamente absurdo. Ainda por cima, por azar, o Hitler seguiu também uma política keynesiana na Alemanha, (ainda que com algumas diferenças da de Roosevelt) o que torna o argumento ainda mais absurdo. É só esse o meu ponto.

      Eliminar
  4. Miguel, se reparar, um dos pontos salientes do meu escrito é precisamente a crítica ao uso indiscriminado do termo "fascismo" para designar realidades tão diversas. O que, de resto, é também uma diferença importante entre comunismo e fascismo. Os comunismos são todos practicamente iguais entre si independentemente do sítio onde existiram. Os erradamente chamados "fascismos" têm todos diferenças apreciaveis entre si e não é possivel organizar um conjunto coerente de fios condutores. No que toca ao uso das massas, note que apoio popular explícito, público e pontual é algo que nada tem a ver com o que referi sobre o comunismo que é adesão inequívoca ao regime manifestada em todos os aspectos, incluindo na vida privada ou, enfim, nos resquícios de vida privada que as sociedades comunistas vagamente e a contra-gosto permitiam. Não é casualidade, de todo, que os regimes comunistas, todos, montaram aparelhos de controlo da sociedade que não têm paralelo em nenhum dos totalitarismos de sinal contrário. A quantidade de efectivos, mesmo da Gestapo, per capita era uma amostra das congéneres nos regimes vermelhos.

    Quanto a quem matou mais, Hitler ou Stalin, é uma questão em aberto. Hitler efectivamente matou, sobretudo mas não exclusivamente, por questões raciais. Mas Stalin (e Lenin antes de Stalin) matou, sobretudo e não exclusivamente, por questões de classe social e origem familiar. Se a questão for se foram os totalitarismos de direita ou os de esquerda quem matou mais, mesmo em proporção per capita, a resposta aqui é simples; os comunismos. Agora, se a questão for exclusivamente Stalin e Hitler pois aí a resposta já não é tão fácil e continuam a ser descobertos novos dados, sobretudo do lado vermelho dado do lado nacional-socialista já estar tudo à luz do dia há muitos anos, que vão permitindo refinar as estimativas existentes. Permita-me ainda um pormenor adicional. Pese embora a sua relevância o número de mortos não é o único item para avaliar sobre a maldade relativa dos regimes. A forma como as pessoas viviam não é algo dispiciendo também. Aliás, entre viver na China da revolução cultural, no Cambodja de Pol Pot ou na Roménia de Ceausescu e estar morto, se calhar era preferivel estar morto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O meu ponto não era tanto o quem matou mais, mas sobretudo o porque matou: há uma diferença qualitativa entre matar porque a) és contra o regime; b) não és a favor do regime; e c) deves ser morto, faças o que fizeres (o conservadorismo autoritário é mais [a], o comunismo [b] e o nacional-socialismo [c] - o fascismo italiano era capaz de estar entre o [a] e o [b]).

      Já agora, no texto que referi acima, temos uma passagem que mostra bem a diferença entre dois regimes normalmente chamados ambos de "fascismo": "The Christian Social party never accepted the legitimacy of democratic institutions in the first Austrian Republic; many of its leaders and followers could not conceive of allowing the Marxist atheists of the Social Democratic party a place in the government, and in 1934 Austrian clerical conservatism imposed a dictatorship. It was a conservative dictatorship; no group was punitively injured unless it remained an organized opposition to the regime. The socialists and the trade-unions were suppressed, but were able to maintain a powerful underground. In 1938, when the Nazis took over Austria, the difference between the two dictatorships became obvious : the totalitarian Nazis actively sought to control the entire society, quickly destroyed the socialist and trade-union underground, and began active persecution of Jews and all opponents of Nazi ideas, regardless of whether or not they were politically active."

      A respeito de se é ou não preferível estar morto a viver sobre certos regimes, temos o contra-argumento que Murray Rothbard fez ao "better dead than red" dos conservadores norte-americanos dos anos 60: os habitantes dos países do Leste, ao não se suicidarem, faziam implicitamente uma escolha de viver sobre o comunismo em comparação com estar morto.

      Eliminar
    2. Miguel, não sei se concordo com a frase "the totalitarian Nazis actively sought to control the entire society". Aliás, ela própria é algo negada logo a seguir com " quickly destroyed the socialist and trade-union underground". Ou seja, mesmo os nazis perseguiram os comunistas e socialistas (que, na altura, não eram o socialismo democrático actual mas apenas uma versão do comunismo, eventualmente ligeiramente descafeinada mas um irmão do comunismo) e por aí foram ficando no que toca a elementos políticos. Ou seja, repressão por motivos exclusivamente políticos o que exclui a repressão depois a certos grupos em particular, nomeadamente judeus, homossexuais e ciganos. Na própria Alemanha aconteceu exactamente o mesmo tendo os comunistas Alemães sido exterminados. Não sobrou um! Os socialistas embora fortemente reprimidos, muitos conseguiram sobreviver contrariamente aos comunistas e no que toca ao resto, ou membros dos partidos de direita ou gente apolítica, pois esses continuaram as suas vidas.

      Quanto ao morrer ou estar vivo, bem, é efectivamente uma opção. Opção essa à qual não é alheio o instinto de sobrevivência natural do ser humano que limita muito a opção pelo suicídio. Nessas condições como em todas as outras.

      Eliminar

Não são permitidos comentários anónimos.