sexta-feira, 20 de maio de 2016

Primeira e última

"As pessoas dão demasiada importância à primeira vez. E a última vez? Ninguém pergunta pela última vez. A última. A última de todas. A última das últimas. A última depois da qual não há mais nenhuma."

Pedro Mexia

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"Certain people always say we should go back to nature. I notice they never say we should go forward to nature."

Mark Rothko

Num dos primeiros dias de aulas da minha escola primária, houve uma actividade em que tínhamos de pintar com tintas. Nunca tinha usado tintas, mas lembro-me de estar a ver os outros meninos pintar. No início apenas vi porque era necessário que alguém me chamasse para pintar, senão eu não faria nada. Sendo eu uma criança extremamente introvertida -- muito sossegada, pasmada, até --, precisava que me dessem instruções específicas e, principalmente, autorização para fazer o que quer que fosse. Finalmente, a autorização veio quando a minha professora me mandou pintar.

Cheguei-me à frente, peguei no pincel, molhei-o em tinta preta e desenhei um quadrado aberto: o pincel era gordo e estava encharcado, as minhas linhas saíram imperfeitas, grossas e luzidias, molharam o papel tanto que ficou deformado. Havia sítios onde a tinta se depositava e o preto era mais intenso. Depois de limpar o pincel e o molhar em vermelho, por cima do quadrado meti um triângulo. Fiz uma casa, com direito a chaminé com fumo e tudo -- a chaminé e o fumo eram pretos. Vermelho e preto foram as primeiras cores que usei. Essa foi a primeira vez que pintei com tintas; lembro-me de me sentir completamente fascinada a olhar para o resultado, especialmente a forma como a tinta e o papel interagiam. Mas antes dessa primeira vez, aconteceu uma última vez: a última vez em que eu não soube o que era sentir ver o que tínhamos pintado.

Fui ver a exposição retrospectiva de Mark Rothko no Museu de Belas Artes de Houston cinco vezes. Já aqui vos falei de algumas dessas visitas, mas a última vez foi por uma razão específica: o último quadro. Queria voltar a escrever, mas nunca conseguia encontrar palavras e, no entanto, algo em mim continuava a remoer a experiência de ter visto aquelas obras e queria ver o último quadro outra vez. Todas as vezes que as vi foram diferentes. É um bocado como sair com amigos: os amigos podem ser sempre os mesmos, mas todas as vezes são diferentes. Na penúltima vez, aluguei o guia audio da exposição, o que ainda não tinha feito. Foi enriquecedor ouvir a experiência de algumas pessoas que tinham dado o seu testemunho acerca do que sentiam quando olhavam para um Rothko, mas também gostei de alguma informação adicional que nos era dada acerca de alguns dos quadros. Um Rothko é um espelho, pois olhar para a obra permite-nos ver um pouco de nós reflectido na experiência, mas talvez todas as coisas sejam assim.

Quando eu olho para um Rothko vejo a humanidade, mas também o mundo sem ela. Penso na primeira vez que alguém humano pintou. Que cor usou? O que é que usou como tinta? Que forma pintou? Especulo que tenha sido vermelho, pois se calhar foi o sangue de alguém, ou talvez de um animal. Talvez se tenha cortado e tenha passado o dedo molhado em sangue por uma rocha e depois viu a mudança de cor que ocorria quando o sangue secava. Ou talvez a tela tenha sido a palma da mão. Algures dentro de nós está guardada a informação dessa primeira vez: a primeira vez que alguém criou algo usando uma cor. Deve ter sentido alguma fascinação, talvez alguma da fascinação que eu senti aos seis anos. Será que tentou mostrar a alguém? Esse alguém foi o primeiro espectador de arte. A experiência que sentiu também está guardada algures dentro de nós.

Saí para o meu jardim para olhar as formas das coisas e senti um ligeiro incómodo: não consegui encontrar quadrados, nem rectângulos, que não tivessem a mão do homem. Comentei a minha impressão com um amigo que estuda arte e ele disse-me que o quartzo aparecia na natureza com faces rectangulares e triangulares e superfícies planas não-curvas. Os quadrados e rectângulos são muito importantes em Rothko, mas quando desenhados são sempre imperfeitos, com os lados esbatidos, não se sabe onde começam, nem onde acabam -- é preciso alguma distância para os identificar, mas a distância ideal para observar um Rothko, segundo o artista, é 18 polegadas, quase 46 cm.

Ao ver algumas das obras de Mondrian, as abstractas, que são quase clinicamente desenhadas, notei que não sinto a mesma humanidade que sinto ao ver as de Rothko e, no entanto, desenhar quadrados e linhas aparentemente perfeitas aos nossos olhos, cortar materiais e construir coisas com essas formas, etc., são conquistas da humanidade, pois inventámos tecnologia para o poder fazer. É uma contradição para mim não sentir mais humanidade em Mondrian do que em Rothko.

O último quadro da exposição era um quadro vermelho e Rothko já não usava cores vibrantes há alguns anos. Parece estranho, a cor está demasiado perfeita em alguns sítios; noutros vê-se manchas brancas, dos sítios onde a tinta não chegou a cobrir a tela por completo. O quadro está inacabado -- é o Rothko inacabado --, não sabemos o que iria ser, talvez fosse o princípio de uma coisa nova que Rothko quisesse criar e por isso a mudança de cor, pois as obras anteriores tinham explorado cinzentos e negros. Sabemos o que o quadro tem: algures nesse quadro está a última pincelada de Rothko, a última vez que lhe apeteceu pintar.

7 comentários:

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    1. Obrigada, já tinha começado a escrever isto há vários meses. Hoje foi a última vez que hesitei e decidi mesmo terminar. Bom fim-de-semana. :-)

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    2. Rita,
      como, se calhar, já reparou, não simpatizo com muitas ideias suas (a maior parte). Mas simpatizo, e muito, com a maneira como escreve e com a generosidade da sua partilha frequente. É o género que mais me atrai em blogues e jornais e que mais me tem desafiado a pesquisar novas e gratificantes leituras e experiências. Uma espécie de atrito nas asas. Obrigado e bom fim-de-semana. Quando passar pelo Connecticut avise.

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  2. Belo texto.
    Voltando à questão do Pedro Mexia: é frequente lembrar-me mais da última vez que da primeira. Nomeadamente nas relações. A primeira vez que conhecemos alguém acontece de forma quase imperceptível, e a partir daí a relação vai crescendo. Em compensação, sei perfeitamente dos momentos em que decidi dentro de mim que não voltaria a ver aquela pessoa, e que aquela era, irreparavelmente, a última vez. Essa última pincelada, quando a dou, é a mais exacta de todas.
    (Não estou a dizer que é uma qualidade.)
    Também sei bem do momento de despedida de um lugar ao qual não voltarei (a casa depois de esvaziada pela mudança), ou do último pedaço de doce que me estava a saber tão bem.
    Moral da história: o Pedro Mexia precisa de ter uma conversinha comigo. Aquele "ninguém" está largamente exagerado. :)

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    1. Obrigada, Helena!
      Acho que ele falou das últimas vezes que não são decididas por nós, as que acontecem sem nos darmos conta. Mas esta citação dele assalta-me o pensamento frequentemente.

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  3. Estava a precisar de ler algo deste género! Amei.

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  4. Boa noite Rita
    Gostei de ler o seu texto.
    Fez-me lembrar:
    "A prosa tem mais valor que a poesia, pois na poesia, a procura da rima desvirtua a essência da mensagem, passando-a para segundo plano." Cito de cor está frase, curiosamente, de um dos poetas portugueses mais considerados de sempre. Alguém que que sentia sempre diferente querendo, no entanto ser comum como os outros.
    Obrigado.
    João Braga

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