quinta-feira, 19 de maio de 2016

Uma turma cara

Frequentei o nono ano na Escola Secundária de D. Duarte. A minha turma, o 9L, era uma das turmas mais caras da escola. Tinha apenas 18 alunos, eu era uma da poucas crianças que nunca tinha reprovado, e havia um menino paraplégico e uma menina cega. Os meus colegas com deficiências físicas tinham apoio especial, através de um gabinete que empregava várias pessoas. Para além disso, os nossos professores apoiavam essas crianças mais horas do que o normal.

A menina invisual, cujo irmão também era invisual e surdo-mudo e não frequentava aquela escola, tinha de ter todos os materiais de estudo escritos em braille. Todos os seus trabalhos de casa e testes tinham de ser traduzidos de braille para negro (a forma como nós, que não somos cegos, escrevemos). Quase todos os nossos professores tinham bastantes anos de experiência e tinham um cuidado especial com a nossa turma. A nossa turma era bastante unida e todos eramos amigos uns dos outros e assistíamos os nossos colegas com deficiências físicas. Esta turma era cara, mas a escola nunca faltou com nada, mesmo sendo ensino público.

Quando me dizem que o ensino privado é mais barato, em média, isso para mim não tem significado nenhum porque os alunos com mais dificuldades fazem, frequentemente, parte do ensino público. É verdade que o estado podia ter instituições especiais para todas estas crianças, mas que tipo de sociedade seríamos nós se estas crianças não tivessem a oportunidade de conviver com crianças "normais" (uso "normais" à falta de outra palavra melhor)?

O ensino em Portugal não deve ser definido pela escola que tem melhores resultados independentemente dos alunos que a frequentam; deve ser definido pelo ensino que é fornecido aos alunos mais fracos, aos que precisam de mais cuidados, porque isso é a verdadeira medida de sucesso: conseguir que o aluno que tem de lutar contra mais dificuldades consiga ter sucesso.

Formar a nossa opinião apenas olhando para médias de custo e de notas não tem significado. O estado tem obrigação de servir todas as crianças portuguesas, independentemente das dificuldades que tenham, e se retira recursos dos mais fracos para dar aos que não têm tantas dificuldades, então o estado falha e falhamos nós como sociedade.

Os contratos de associação são uma ferramenta que o estado tem ao seu dispôr para gerir os recursos parcos que tem porque Portugal é um dos países mais endividados do mundo. O estado tem a obrigação não só de garantir o bem-estar das crianças actuais como de assegurar que a sua gestão de recursos garanta serviços de qualidade mínima para as gerações vindouras, até porque a base tributária de Portugal está a diminuir e as gerações futuras terão menos contribuintes para suportar os seus encargos, que incluem a dívida que irão herdar da geração actual.

É imoral justificar a manutenção de contratos de associação apenas porque permite que os pais escolham entre escolas privadas e públicas, quando se retira recursos dos mais fracos. Há escolas privadas, como, por exemplo, a que o Artur Rodrigues descreveu no Observador, que devem ser preservadas, pois fornecem serviços a uma população de alunos carenciados que não tem alternativas no ensino público -- refere o Artur que a escola serve alunos que estão "desinseridos da sua família". A decisão de celebrar contratos ou não deve ter em atenção não só a necessidade dessas populações, mas também os recursos que o estado tem disponíveis, logo tem de ser uma decisão caso a caso.

Também acho moralmente repreensível dizer que o estado tem obrigação de assegurar a viabilidade financeira de todas as escolas com quem celebrou contratos de associação porque está a agir de má fé, se não o fizer, e o ensino privado até é mais eficiente do que o público. O que é eficiência? Uma criança de uma boa família tem probabilidade de completar o ensino obrigatório em menos tempo, com melhores notas, e custando menos à escola. Isso quer dizer que a escola é mais eficiente do que uma escola que serve uma população cujos alunos vêm de famílias carenciadas?

O ensino público tem ineficiências, algumas das quais são introduzidas pelo poder dos sindicatos, mas querer fechar escolas públicas apenas porque se odeia sindicatos é errado; mas isto não significa que o ensino público não deva ser consolidado, com algumas escolas a fechar, de forma a que a gestão dos recursos seja melhorada. Lutem contra os sindicatos, mas não castiguem os alunos porque os adultos sabem puxar a brasa à sua sardinha melhor do que as crianças.

Nota: esta sempre foi a minha opinião, mas tive de passar a última semana a refutar argumentos que eu acho fracos e injustificáveis.

12 comentários:

  1. Rita, os quarto e quinto parágrafos do seu texto, correspondem quase ponto por ponto, ao que uma vez escrevi ao afastar-me de um processo de avaliação de escolas que só via números e não seres humanos. Nem sempre concordo com as suas posições, mas desta vez, "chapeau"! 100% de acordo. Comecei bem o dia!

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    1. Obrigada! Estranhei a sua ausência neste debate. Estive quase para lhe enviar um email. :-)

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    2. O debate, Rita, tinha tudo para ser o que foi e eu já não me entusiasmo com este tipo de discussões que normalmente distorcem os factos. Neste post, a Rita foi certeira: o que se passa na educação, do Ministério aos pais, passando pelas centenas ou milhares de pessoas que a servem, tem sempre de ser analisado e ponderado tendo como alvo os alunos - não como entidades que se podem adicionar para obter um resultado mas como entidades únicas que são. Difícil? É. Mas necessário.

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  2. Também quero deixar aqui um chapeau! :)
    É isso mesmo, e conseguiste explicar de forma tão simples que até pode ser entendido por um daqueles alunos de colégio privado com menos jeito para os raciocínios complicados, o tal que vai ser expulso ainda antes do fim do ano lectivo porque as notas dele dão cabo do ranking da escola...

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  3. Concordo com o teu post, Rita. Sobretudo com a parte em que argumentas que a medida de sucesso mais correta para o ensino é o quão bem sucedidas são os estudantes cujo o ponto de partida é mais recuado. Sem uma genuína "igualização" das oportunidades reais disponíveis para cada um de nós, nada disto - economia de mercado, meritocracia, estado de direito, democracia, etc - faz muito sentido.

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    1. O problema desta discussão (genericamente falando) é que a informação é irritantemente pouco fidedigna. Vou dar um exemplo que pus um dia destes na minha página de FB:

      "Leio um artigo de Manuel Carvalho no Público e, a certa altura, surge o seguinte parágrafo:

      "[O Governo] Tem de saber as suas diferenças [das escolas públicas] e cuidar das mais fracas – merece por isso elogio a decisão do Governo em acabar com os créditos horários que Nuno Crato tinha concedido às melhores."

      Tenho um ataque de curiosidade e sigo o link "acabar com os créditos horários" para um artigo anterior e encontro nele o seguinte parágrafo:

      "... o ex-ministro da Educação ter decidido associar ao crédito horário – atribuído em função do número de turmas, alunos e professores – mais 20 horas extra por semana às escolas que se distinguissem pela sua “eficácia educativa” (melhoria de resultados ao longo do tempo, alinhamento entre notas internas e de exame e taxas de conclusão) e mais outras 30 para premiar as que se destacassem na redução do abandono escolar.""

      É uma canseira ler os jornais.

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    2. Concordo que há um problema de desinformação, Isabel. E depois há um outro ponto, que é uma tensão permanente entre o que eu desejo como objetivo político (a genuína igualdade nas oportunidades), e os incentivos para que os miúdos aprendam e as escolas progridam. Tenho dúvidas de como lidar com esta tensão, mas tenho a profunda convicção que não se resolve, neste caso específico, com o mercado.

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  4. Convicção não tenho, dúvidas quanto à bondade intrínseca do mercado aqui e na saúde, por exemplo, tenho bastantes.

    Mas tenho uma convicção profunda, sim: quanto maior for a segregação numa sociedade, pior ela funciona. Por razões que não sei como os economistas medem mas que eu vejo todos os dias com os meus próprios olhos: a minha capacidade de protesto e argumentação numa estação de correios ou numa sala de espera dum hospital público (para simplificar, que se calhar também se aplica a um privado) é infinitamente maior e mais eficaz do que a da grande maioria das pessoas que lá estão comigo. Entristece-me imenso o meu país, mas é assim.

    Agora, como é que isto se melhora... não faço ideia. (Não é com certeza com a ajuda desta imprensa, mas isso são contas doutro rosário).

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    1. Concordo, com o comentário acerca da segregação. Foi por isso que no texto disse que a minha turma era unida, pois de facto convivíamos todos juntos e os alunos sem deficiências físicas até costumavam andar pelo gabinete de apoio aos alunos com deficiências físicas (não me recordo dos nomes técnicos para isto). Acho que a integração de todas as pessoas na sociedade é muito importante e é uma das responsabilidades do estado.

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  5. Também não se deve criar a ideia de que o sector privado da Educação se está "a marimbar" para os alunos deficientes.

    No Porto existe há décadas - penso que existe ainda - um estabelecimento para esses alunos, o Ana Sullivan (passe a publicidade), o qual, diga-se, já educava esse tipo de alunos quando o Estado por eles nada fazia.

    Ao ler certas coisas, até parece que antes de o Estado se arrogar esse papel, não havia inúmeras instituiçoes de assistência e solidariedade privadas. Havia e há, diga-se.

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    1. Essa é outra parte da desinformação: muitos colégios privados têm um papel importante nessa área mas é imcomparavelmente mais fácil simplificar e sugerir que "os" privados escolhem os melhores alunos e expulsam os que dão cabo dos rankings. Tenho até a impressão de que ouvi ou li alguém (a Secretária de Estado?) mencioná-los explicitamente como estando excluídos desta discussão sobre os contratos de associação. Li também algures (é uma citação, e não li a peça) que, por exemplo, os Salesianos de Manique (perto de Cascais) têm cerca de 25% dos alunos com apoio da Acção Social Escolar e 10% com necessidades especiais.
      Por acaso tinha reparado que os salesianos estão muito representados na lista dos contratos de associação, pelo menos até 2014, que foi a única lista que consegui ver (isso é outra coisa que me irrita...).

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    2. Alexandre, quando eram os privados a tomar conta dos “alunos deficientes”, antes de o Estado se meter, éramos um país que tratava miseravelmente os seus deficientes, os pobres, os destituídos, crianças inclusive. etc. Pois é, não havia “inúmeras”, não, havia poucas. Particularmente sobre a educação, acho que o mito apenas se desfaz quando se colocar, preto no branco, estatísticas sobre o número de crianças com necessidades educativas especiais (ou o que quer que se lhes chamasse à época) que os privados aceitavam. Não tenho grande respeito pelo papel dos privados ou da Igreja em Portugal na assistência às crianças e pobres. Tenho já 53 anos e basta-me a minha memória e a que me foi transmitida pelos meus velhos.
      Sobre o alegado atual papel importante dos privados na educação de crianças “dificeis”, acho bem que o Estado continue a apoiar quem se dedica a tão nobre tarefa. Esses, não se importam com os rankings. Sobre os colégios que se gabam de serem melhores, porque estão acima da pública nos rankings, gostaria de saber como conseguem tão bons resultados com uma suposta grande percentagem de alunos com necessidades educativas especiais.
      Eu continuo a louvar escolas como as das vilas do interior que conseguem subir da posição 456, para a posição 450.
      Bom post, Rita.

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