segunda-feira, 23 de maio de 2016

Referendo - terceiro take

Há uns tempos atrás aleguei que o modo como os políticos abordassem a profunda desigualdade regional no Reino Unido – e, em particular, a desigualdade entre Londres e o resto de Inglaterra - seria determinante para a evolução no sentido de voto no referendo, e, claro, para o resultado final. 

A imagem abaixo vale mais do que mil palavras. Ela mostra o produto per capita das capitais de vários países (a bola verde); o produto per capita do país, como um tudo (a barra vertical verde); e o produto per capita das 10 regiões mais pobres do país (as 10 bolinhas azuis). 


Como região, Londres é muito mais rica per capita do que o Luxemburgo (que é o segundo país mais rico do mundo, a seguir ao Qatar). Por outro lado, as regiões mais pobres do Reino Unido são praticamente tão pobres como as regiões mais pobres do nosso Portugal. Sim. O Reino Unido também tem Trás-os-Montes e um Rabo de Peixe, mas não tem Lisboa. Em vez dela, tem um Mónaco em esteróides, com 9 milhões de habitantes e uma riqueza que não tem qualquer paralelo na Europa. 

É relativamente evidente que, do ponto de vista puramente económico, não há qualquer dúvida sobre que lado tem razão no debate: a saída do RU da UE é estritamente pior para a Economia de todo o país, e, diria mesmo, de todas as suas regiões individualmente consideradas. O Governo – sim, o Governo, cujo logotipo aparece numa brochura de luxo que foi enviada a toda a população, a fazer campanha pela permanência - tem apresentado uma narrativa imbatível: o cenário económico mais otimista possível para a saída, que é aquele que está a ser defendido sem grande convicção pelos seus apoiantes, é exatamente igual àquilo que já existe. Na melhor das hipóteses, um Governo pós-saída conseguiria assinar um tratado económico de comércio livre com os outros países europeus, continuando a ter o direito de não participar de nenhuma das restantes políticas da União, e a contribuir com transferências extraordinariamente baixas atendendo ao seu nível de riqueza relativo. E é evidente que esse Governo nunca conseguiria tal feito, porque, em caso de saída, a União nunca permitiria ao Reino Unido manter as mesmas vantagens que usufruiria com a permanência – ou não servia para nada ser Membro. 

Mas o debate não é só económico. O debate é político, e o ressentimento com que os ingleses, não londrinos, observam a excrecência económica que é Londres não pode ser desvalorizado – e em particular como observam todas as manifestações de uma economia centrada num coração hiperdimensionado e que se desenvolveu para o servir, desde a imigração ao poder da banca de investimento, passando por uma política monetária que favorece uma libra cara e uma política industrial que, basicamente, consiste em desindustrializar agressivamente em favor dos serviços. Muitas destas manifestações confundem-se com a pertença à União, cuja liberdade de movimento de pessoas e capitais serviu, sobretudo, Londres. 

E em que pé está o ressentimento dos ingleses não londrinos? Há uma pista que me parece relevante. A principal figura que faz campanha pela saída não vem desse país real - e não o representa. Ao contrário, andou anos a servir os interesses de Londres. É um dos grandes paradoxos que só se explica pela enorme ambição política de Boris Jonhnson, que apostou tudo ao aperceber-se que o lado da saída estava despovoado e que ele o podia ocupar, mesmo se não acreditasse em nada daquilo. Ter sido Boris a chegar-se à frente, e não outra figura qualquer que pudesse corporizar a Inglaterra que não é Londres, pode estar a mostrar melhor do que qualquer argumento do Governo o quão frágeis são os alicerces de uma eventual saída, e como o seu risco, talvez maior que o ressentimento, pode apenas ser integralmente assumido por quem não tenha qualquer genuíno interesse ou preocupação com o eleitorado que quer representar. 

Num próximo post falarei da minha viagem recente a não Londres - à Cornualha. 

Primeiro take
Segundo take

31 comentários:

  1. Itália e Alemanha parecem-me casos curiosos. Mas não surpreendentes.

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    1. Provavelmente o resultado de só se terem unificado no século XIX?

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    2. Acho que, no caso da Alemanha, é mesmo por causa da unificação do século XX, e não da do XIX :)

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    3. Bem, nem Roma nem Berlim são as cidades mais ricas dos seus países, e não estou certo que isso tenha alguma coisa a ver com unificações ou reunificações.

      A grande base industrial e financeira de ambos os países nunca se localizou naquelas regiões.

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    4. Vá lá, Alexandre, o meu comentário era uma borla para ti ;) devias ter aproveitado. O que quis dizer é que a razão de Berlim ser pobre se deve ao período comunista.

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    5. Eu entendi, Luís, mas não percebo essa da borla. Acaso serei uma ave assim tão rara por considerar nefasto o período comunista na falecida República "Democrática" Alemã?

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  2. Já sabes que eu gosto muito destes teus posts. Aprendo sempre imenso. Londres comparado com o resto é qualquer coisa. Aposto que isto distorce todas as estatísticas nacionais do Reino Unido.

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  3. É por isso que deixei de ser "apreciador" da Thatcher há uns anos, quando visitava a então-ainda-não minha mulher em Sheffield. O nível de destruição social no resto do país - especialmente na antiga "zona industrial" - que a "aposta" na City causou é indesculpável.

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    1. É um problema, sim. E não é justo estragarem a cidade que produziu os Pulp :)

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    2. Luis, eu em Sheffield tive o meu primeiro encontro com uma "no-go" zone. A zona pior, em termos gerais, da cidade é junto ao rio (antigos bairros operários) mas há (ou haviam) dois edifícios horrorosos na linha do tram que dá para o centro comercial lá do sítio (Meadowhall). Há distância pareciam dois edifícios grandes, envidraçados mas normais. Mas perto se percebia que eram uma versão inglesa dos projects, com vidros partidos e decandentes - e fui informado que ali ninguém vai.

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    3. Carlos, eu nunca estive em Sheffield, mas estive em Liverpool e senti o mesmo. O norte, em particular, tem sido uma grande vítima desta estratégia de desenvolvimento baseada na City. É muito interessante essa referência de Sheffield.

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  4. Que bom receber informação complexa de modo tão simples. E logo com alertas como o da Vera (e sua sequência de comentários).

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  5. Luís, estes teus takes são serviço público. Assim, percebo melhor o que se está aí a passar, que é decisivo para o futuro da Europa, do que lendo a imprensa portuguesa. O elogio do Isidro Dias é mais do que justo.

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  6. «(...)um Governo pós-saída conseguiria assinar um tratado económico de comércio livre com os outros países europeus, continuando a ter o direito de não participar de nenhuma das restantes políticas da União, e a contribuir com transferências extraordinariamente baixas atendendo ao seu nível de riqueza relativo.»

    Bem, existe uma coisa chamada Espaço Económico Europeu, consistindo nos estados-membro da UE e em três dos quatro membros da EFTA, que garante a livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capital entre todos esses estados. E a própria Suíça também tem acordos da mesma natureza com a UE. Muito provavelmente, o Reino Unido, caso votasse pelo Brexit, acabaria por regressar à EFTA. Além disso, estas coisas têm dois sentidos: o Reino Uido é o principal destino das exportações da eurozona, por exemplo, e não seria do interesse desta restringir o comércio com um Reino Unido fora da UE. E há ainda da questão das tarifas e demais barreiras alfandegárias, regulamentadas pela Organização Mundial do Comércio.

    Quanto à contribuição do Reino Unido para o orçamento comunitário, é a segunda em termos líquidos.

    Relativamente às motivações de Boris Johnson, discordo largamente, mas não vou debater coisas subjectivas.

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    1. "Muito provavelmente, o Reino Unido, caso votasse pelo Brexit, acabaria por regressar à EFTA."

      Alexandre, a EFTA tem quantos membros hoje em dia? 44% das exportações do RU vão para os países da UE. Qual é a proporção do que vai para os países da EFTA? Quanto ao resto que dizes, parece-me exatamente wishful thinking. Achar que a UE vai aceitar que o RU participe do mercado livre, sem nenhuma contrapartida.

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    2. Luís, não está aqui em causa o número de membros da EFTA, mas sim - e era a isso que me referia - que quase todos os membros da EFTA pertencem ao Espaço Económico Europeu (EEA na sigla inglesa), e não me parece de todo "wishful thinking" pensar que isso possa vir a suceder também com o Reino Unido, até porque, reitero, ele é o principal destino das exportaçõe da eurozona (e não podia ser wishful thinking porque eu não tenho "wishes" nem para um lado, nem para o outro ;-) ).

      Quanto às contrapartidas, deixo-te o que se passa com a Noruega:

      «Norway has been granted participation rights (save voting rights) in several of the Union's programmes, bodies and initiatives. These include security and defence areas like the European Defence Agency, the Nordic Battle Group, Frontex, Europol and the European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction. (...)

      Norway's total financial contribution linked to the EEA agreement consists of contributions related to the participation in these projects, and part made available to development projects for reducing social and economic disparities in the EU (EEA and Norway Grants).[6][7] EEA EFTA states fund their participation in programmes and agencies by an amount corresponding to the relative size of their gross domestic product (GDP) compared to the GDP of the whole EEA. The EEA EFTA participation is hence on an equal footing with EU member states.»

      A objecção principal dos "Brexiteers" à UE nem sequer é a contribuição para o orçamento, diga-se.

      Por outro lado, acho errado pensar-se que os magnânimos e bondosos membros da UE terão vontade de iniciar uma guerra comercial com o Reino Unido como desforra por uma sua eventual saída (que até acho pouco provável).

      Por outro lado, já que os incansáveis "construtores da Europa" decerto objectam às tradicionais resistências britânicas à "ever-closer union" (da qual os britânicos acabam de ser isentados, diga-se, no acordo que permitou a Cameron recomendar o voto no "Remain"), então o mais lógico seria darem um suspiro de alívio e não, em vez disso, tentarem vinganças mesquinhas. Claro que eu entendo que o mero facto de um estado-membro (e logo um dos principais) ousar colocar a questão da sua permanência ao seu eleitorado deve ter causado enorme irritação em Bruxelas, e isto por duas razões principais: 1) a UE, como é sabido e notório, detesta referendos, e até costuma forçar a sua repetição até que o resultado dê "certo"; 2)A "moda" pode pegar: já há sondagens em Itália e até França que mostram que uma significativa parte dos respectivos eleitorados gostaria de ver essa questão lá também referendada.

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  7. Análise muito nteressante.
    Mas qual a causa da riqueza de Londres - e do desequilíbrio para o resto do Reino Unido? Penso que tem que ver, sobretudo, com o facto de Londres ser um centro financeiro, cultural e de serviços global. Atraiu também milhares de quadros qualificados, sedes de multinacionais e milionários investidores de todo o Mundo.
    Serve (e serve-se de) não só o resto do Reino Unido, mas, sobretudo, a economia mundial. Não me parece que o efeito "capital do RU", pela concentração da administração pública, tenha um impacto neste desnível face ao resto do país. Parece-me que isto tem que ver sobretudo com o ser uma capital "global" de certos sectores económicos.
    Nesse sentido, é difícil de comparar com outras capitais - com excepção, talvez, de Nova York e Hong Kong.

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    1. GBT, quem vive (ou viveu, como eu) no Reino Unido nota bem o "diferencial" de Londres para o resto do país.

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    2. GBT, obrigado pelo elogio. Julgo que há, desde há duas décadas, uma política macro e micro que favorece Londres. Não tem de ser necessariamente mau - o Krugman mostrou como há claramente vantagens na concentração de produção num determinado centro. E, no caso de Londres, essa concentração é sobretudo a de serviços financeiros.

      Parece-me que a imigração de trabalho especializado relativamente barato, a circulação livre de capitais, e uma libra forte (que traz importações mais baratas e que levou à rápida destruição da indústria britânica), foram políticas que favoreceram Londres. Algumas dessas políticas, como é óbvio, estão associadas à pertença à UE.

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  8. Caro Luís:
    Em temas económicos, os seus posts e os do Luís Aguiar-Conraria são uma lufada de ar fresco no Destreza, com os ares demasiado empestados por argumentações distorcidas devido a abordagens eivadas de simpatias (e antipatias) ideológicas.
    Entre a riqueza informativa, a clareza, a simplicidade explicativa e a utilidade do seu post, não sei que o deva realçar mais.
    Obrigado.

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    1. Esperemos que o outro Luís não leia este comentário, não vá sentir-se ofendido por ser comparado comigo ;) No resto, muito obrigado, Manuel.

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    2. Obrigada, Manuel Silva. Estou sempre a dizer ao LG para escrever mais. Eu até queria que ele escrevesse posts sobre museus e passeios turísticos, mas já sei que o Manuel depois iria descascar no rapaz e ele não mereceria, pois a culpa seria inteiramente minha.

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    3. Já a minha avó dizia: "não serás um homenzinho enquanto não fores elogiado pelo Silva!"

      (atenção que isto não é para os Luíses, cujos textos económicos também aprecio - só que não acho que o Destreza ande com os ares "demasidado empestados" por causa dos textos económicos de outros autores, antes pelo contrário.

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  9. Caro Luís Gaspar:
    Eu não o comparei com o Luís Aguiar-Conraria nesses aspectos a que se refere, isso não me interessa nada, não os conheço o suficiente para me pronunciar sobre tal; o que quero é ler bons posts onde possa colher informação útil para poder ficar menos ignorante.
    E tenho verificado essa característica, da boa informação, potenciadora de bom e esclarecedor debate, nos vossos posts.
    Cada um de vós terá a sua opção ideológica, legítima, à luz da qual lerá o mundo e a realidade mais próxima, tal como cada um dos leitores-comentadores tem a sua opção ideológica que, naturalmente, influencia a avaliação do que lê.
    Não há pessoas neutras.
    O problema não está aí, está no facto de essas opções numas pessoas condicionarem o que escrevem, pondo-as claramente ao serviço de outras agendas ou fazendo-o movidas por simpatias ou ódios pessoais, e noutras não.
    E às vezes deturpando ou ignorando dados objectivos da realidade.
    É o que não noto nos vossos posts.
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    P. S. Depois de ter escrito o comentário, apercebi-me de que deturpei um pouco o que queria dizer (a rapidez da escrita nestes locais trai-nos muitas vezes), pois não era só em relação a temas de economia: é em relação aos vossos posts em geral.
    Se se lembrar, fiz-lhe uma apreciação positiva noutro post que não era de economia.


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    1. Caro Manuel, o que disse ontem foi uma tentativa de piada. Claramente, estava demasiado cansado para fazer boas piadas. De facto não há pessoas neutras. Há duas coisas (bom, entre tantas outras!) muito boas acerca das pessoas que escrevem neste blog: todas têm posições políticas, mas ninguém as esconde, e acho que todos estão bastante preparados para mudar de posição sobre temas particulares se a realidade os desmentir. O que é um ótimo começo!

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  10. Mais uma achega, embora tardia, a este debate. Estamos todos a aceitar sem questionar o axioma do Luís, segundo o qual as regiões menos afluentes do Reino Unido só teriam a perder com a saída da UE. Mas porquê? Será que a estagnada e esclerótica economia do Continente alguma coisa irá fazer por essas regiões? Que fez a UE por elas nos 43 anos em que o Reino Unido já leva de membro da UE? Impediu-as de chegarem a que chegaram?

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    1. Alexandre, nota que esse "axioma", como lhe chamas, não é central no meu argumento. Eu disse "a saída do RU da UE é estritamente pior para a Economia de todo o país, e, diria mesmo, de todas as suas regiões individualmente consideradas." Acho que o "diria mesmo" antecipa que não tenho certezas sobre o assunto.

      Tendo dito isto, duvido que sangrar Londres beneficie o resto do país. Já sei que duvidarás provavelmente que Londres sofresse com a saída do RU da UE, mas aí acho que estás isolado no argumento.

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