segunda-feira, 16 de maio de 2016

Limpar e esganiçar

No Sábado, foi dia da C. limpar a minha casa porque faço o outsourcing de parte das limpezas. Desta vez tinha sido diligente e arrumado os livros, revistas, correio atrasado, etc. que andam sempre no balcão da cozinha. Comemos pizza para o almoço, a pedido dela, e não demorou tanto a preparar o almoço, nem a limpar a cozinha. A preparação do almoço é da minha responsabilidade e comemos sempre à mesa. Enquanto almoçávamos, ela contou-me das condições de vida em El Salvador, onde a filha de 25 anos trabalha numa clínica de oftalmologia e ganha $7/dia. A outra filha, de 31, só tem o quinto ano de escolaridade porque ficou em casa a cuidar da avó; agora não consegue arranjar emprego porque pedem um nível de educação mais alto. Por isso, toma conta dos filhos da outra irmã, a tal que ganha $7/dia. Antes de vir para os EUA, há cerca de 13 anos, a C., que tem o sexto ano de escolaridade, era ajudante de uma supervisora numa fábrica de têxteis, "ganhava" $5/dia, das 7 da manhã às 17h, e a hora de almoço não era paga. De duas em duas semanas pagavam-lhe, mas era incerta a quantia e também não lhe explicavam os cálculos da mesma. Decerto que o efeito do câmbio deve afectar estes valores, mas não perguntei que taxa de câmbio usou.

Durante o almoço também me contou que o filho do marido dela, que chegou aos EUA recentemente, comprou uma guitarra e já sabe tocar o tema da Pantera Cor-de-Rosa. Eu disse-lhe que havia uma canção muito popular para quem anda a aprender a tocar: "Wish You Were Here" dos Pink Floyd. Procurei nos meus CDs e no iTunes, mas não tenho esse album na minha colecção -- até me surpreende porque gosto bastante e acho que o tinha em Portugal. Fui ao YouTube, toquei a canção, e escrevi o nome num papel para ela dar ao enteado. Como o auto-play estava ligado, começaram a tocar mais músicas dos Pink Floyd. Ela aproximou-se de mim e perguntou o que estava a tocar porque era uma canção dos seus tempos de El Salvador e ela gostava muito; era "Another Brick in the Wall". Pedi o papel que lhe tinha dado e escrevi o título. Entretanto, a filha dela, que tem 11 ou 12 anos e a acompanha, já tinha feito uma busca de "Wish You Were Here" no SmartPhone da mãe e estava a ouvi-la.

Enquanto ela terminava de cuidar da minha casa, decidi ler poesia em voz alta para a filha ouvir, pois a menina não fala muito bem inglês. Comecei por ler Safo (já vou no terceiro livro, mas dois deles são os fragmentos completos só que traduzidos por pessoas diferentes); depois apeteceu-me ler em espanhol, apesar de o meu espanhol ser fraco. Fui buscar a "Aventura Poética" de Pedro Salinas. Ao desfolhar o livro encontrei um poema que me agradou muito: este em baixo. Alguns dos meus amigos descrevem a minha voz como muito jovial e feliz e ao ler este poema recordei-me deles. Achei uma coincidência engraçada o ter encontrado porque, nesse mesmo dia, sugeriram que eu era uma versão de "esganiçada" só porque argumento muito quando discordo dos outros no Twitter (e em todo o lado, diga-se). Faz parte do meu trabalho ter de saber construir argumentos minimamente lógicos para defender um ponto de vista. Pergunto-me se alguém que joga com um futebolista profissional também o acha esganiçado porque sabe dar pontapés na bola...

Li o poema em voz alta e perguntei à menina se era bonito. Ela disse que sim e a mãe disse que tinha ido para a sala arrumar o fio do aspirador só para me poder ouvir recitar poesia. Esganiçada, hein?

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