terça-feira, 10 de maio de 2016

História gótica


61. Os anões da floresta de Zselyk vivem nela desde tempos imemoriais, como costuma dizer-se. Ou seja, desde sempre. Ou ninguém sabe desde quando.
Para todos os efeitos, desde tempos imemoriais, seja. Não sabendo ninguém desde quando também não sabe ninguém se sempre foram assim, cúpidos e violentos. Embora saibamos que o mundo é dos violentos e que um homem bom é difícil de encontrar. Ninguém sabe, do mesmo modo, se sempre serviram os senhores do castelo em equilíbrio instável no topo da colina onde termina a floresta. Quando e se foram eles a escavar o túnel que conduz a uma sala com pedaços de corpos humanos pendurados de ganchos, aqueles ganchos que vemos nos talhos, pés, braços, torsos. Parecidos como ervilhas numa vagem, os anões. Nunca saíram da floresta e nunca procuraram saber o que está para além do sopé da colina onde aquela acaba. Com uma excepção. Saíam da floresta para ir até à mina roubar o carvão que homens encardidos e curvados retiravam das profundezas. Mas não iam por querer saber como eram as coisas para além da floresta, iam só roubar. Deixavam pegadas de pés pequeninos e por isso os mineiros e capatazes não procuravam saber quem os roubava porque só podiam ser diabos saídos dos infernos e o carvão que roubavam só podia ser para alimentar as chamas do tártaro e resignavam-se aos roubos pensando que assim pagavam tributo às forças que poderiam arrastá-los para a morada fervente das almas danadas. Também era uma espécie de inferno o lugar para onde os anões os arrastariam, a tal sala onde um corcunda de orelhas carcomidas examinava corpos vivos para escolher as partes em que seriam retalhados. Em vez do fogo, a faca. Uma vez, um dos anões perdeu um sapato. Ficou preso na lama e ele nem dera por isso porque estava ocupado, já que roubar é um trabalho. Seria descoberto pelo jovem mineiro de quem a mãe esperava grandes coisas, que viesse a ser um grande homem de unhas polidas, que viesse a fazer coisas extraordinárias. Mas a única coisa extraordinária que se conhece na biografia do jovem mineiro foi ter escondido o sapato e não o ter mostrado a ninguém. O anão com um só sapato reparou no pé descalço assim que chegou onde quer que seja que habitam os anões e não perdeu tempo. Roubou a outro anão distraído o sapato que lhe faltava, muito roubam estes anões. Indignado, o anão lesado procurou junto de todos os outros anões o seu sapato. Calçou todos os sapatos correspondentes ao pé descalço. Um deles deveria ter a forma desse pé, todos os sapatos se conformam aos pés de quem os usa sempre durante muito tempo. São mais pessoais e intransmissíveis do que qualquer outra peça de vestuário. Que o diga o anão que roubou o sapato, este não lhe caía bem e era com dificuldade que pisava o chão com o pé dorido. E quando foi descoberto o sapato e devolvido sob ameaça, teve o anão que roubar outro, e o anão a quem roubou roubou também um anão vizinho e este roubou outro e tanto foram sendo roubados os sapatos que ao fim de vários círculos e combinações acabou por ficar cada anão com o seu, familiar e conformado ao seu pé, e o anão que perdera um sem ele e com o pé descalço na mesma. E tantas vezes se repetiu o roubo sucessivo de sapatos que o anão descalço acabou por concluir que o melhor seria fazer um novo. O crime não compensa.

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