quarta-feira, 4 de maio de 2016

História gótica


55. Madame Licodu bebia um chá enquanto a criada esfregava uma pomada nas têmporas da inválida.
O farmacêutico viu aí a sua oportunidade e empurrou a porta do quarto de Ada. Abriu-se sem ruído. Dragomir entrou olhando em volta. O quarto estava irrepreensivelmente arrumado, e em nenhum lugar se viam os sinais do luxo frívolo que costuma acompanhar as grandes senhoras e as meninas que virão a ser grandes senhoras. Não havia frascos de essências raras e boiões de cold cream, nem roupões de seda e roupas finas espalhados pelos sofás. Nem uma meia sequer esquecida sobre o tapete, uma meia branca ainda com a forma da perna que a vestiu, a curva da coxa, a barriga da perna, o declive por trás do joelho. Não havia flores e revistas, caixas de bombons ou billets-doux. A almofada do pequinois irritante. Fitas, pérolas, lencinhos de renda, o leque que salva do delíquio na ópera. Babuchas do oriente, luvas elegantes, caixinhas de prata com sais, sapatos e sapatos e sapatos. De todas as recordações da sua vida de intimidade com a classe ociosa, era dos sapatos que Dragomir mais sentia falta. Os sapatos de baile, os botins de passeio, as botas de montar, aqueles prodígios que retiram aos corpos o peso a que foram condenados, que os elevam e fazem de cada passo um assombro, uma maravilha, um cúmulo. Aquelas criações de génio que a cada pé e a cada movimento conferem autoridade, não a autoridade das leis mas a autoridade do conquistador. O que separa o alto do baixo. O que distingue. Dragomir adquirira o hábito, sempre que deixado sozinho nas alcovas, de encostar à cara os sapatos das senhoras e meninas que visitava, e de aspirar os cheiros que neles tinham ficado. Fantasiava até ser pisado por uma mulher calçando sapatos de tacão fino e alto, beber champanhe usando-os como taça, beijar-lhes a sola. Mas no quarto de Ada não havia um único par que pudesse saciar-lhe a fantasia, e Dragomir deu meia volta para abandoná-lo. Foi então que os seus olhos pousaram sobre um objecto deixado no toucador simples de madeira escura, um móvel torto e coxo com um espelho estragado nas bordas onde Ada arranjava o cabelo todas as manhãs e o soltava à noite retirando devagar cada gancho e deixando cair cada madeixa. O cabelo era a sua única vaidade. Escovava-o cem vezes, como mandam os romances e como lhe ensinara a tia solteira. Concentrava a sua atenção totalmente nos fios dourados e castanhos. Por vezes só escovava o cabelo noventa e nove vezes, outras escovava-o cento e uma. Mas desde que chegara a Zselyk nunca deixava de pensar na irmã, nem mesmo ao espelho. E por isso não conseguia contar quantas vezes a escova passava pela sua cabeleira farta. Nem conseguia aperceber-se de que tinha perdido todos os seus prazeres na busca e nos horrores que fora encontrando, na visão daquela gente devastada não sabia pelo quê, homens e mulheres a quem foram arrancados mais do que os prazeres, homens e mulheres esvaziados como sombras. Dragomir agarrou no caderno com uma capa de veludo verde que chamara a sua atenção e, tal como acontecera com a porta do quarto, não resistiu a abri-lo. Tremeu ao sentir o regresso da sua antiga curiosidade, asfixiada pela desilusão e emagrecida pela falta de estímulo naquela aldeia de gente sem intrigas ou segredos interessantes, sem excentricidades e manias. No caderno viu escritas numa caligrafia singular frases cujo sentido não foi capaz de decifrar.

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