terça-feira, 10 de maio de 2016

História gótica


60. A floresta de Zselyk, inclinada sobre uma encosta, é tão densa que nela quase não penetra a luz do sol.
 De qualquer modo, o sol é raro em Zselyk. Ainda assim, a floresta de Zselyk tem clareiras. Seja como for, quem se aventurar floresta dentro não se perderá, não completamente, porque a floresta de Zselyk é inclinada sobre uma encosta e há uma direcção segura a seguir, ou para cima ou para baixo. Já é alguma coisa. Já permite escapar com sucesso a alguma fera que persiga o aventureiro. Já dá ao aventureiro a possibilidade de correr encosta abaixo sem olhar para trás e sabendo que em breve encontrará terreno aberto, e em terreno aberto quem não se aventura são as feras. E subir, pergunta quem pensa na floresta inclinada de Zselyk, o que acontece se, em vez de descer correndo, o aventureiro subir contando com as árvores possantes que o escondam. Bom, fugir correndo para baixo combina melhor com o instinto, aquele, o que quer manter-os vivos. Mas um aventureiro é conduzido por outros instintos, quer ver, claramente visto, o lume vivo. Quer levar a melhor às feras. Quer poder voltar aos sítios confortáveis com histórias de escapar por uma unha negra, de ser salvo por um gongo, de quase entregar a alma ao criador. Quer, contando histórias, sentir o desejo forte de regressar às aventuras. Para o aventureiro, as janelas não são frinchas para ver o perigo sabendo-se protegido, são convites, aceites com prazer, e o perigo é bem-vindo. Procura-o, rastreia-o, caça-o. Por vezes consegue apanhá-lo e traz para os timoratos troféus. Mas, como se disse, ou talvez não se tenha dito, há vezes em que a única coisa a fazer é fugir, porque mesmo que se fuja para cima foge-se. A única coisa a fazer é fugir. Salvar a pele. Mas a do aventureiro é rija, é como uma couraça. E se a perder, que possa perdê-la, ai que ainda a perdes, o aventureiro prefere à própria pele o nome na boca de toda a gente, a fama e a memória. O aventureiro prefere à própria pele encontrar as criaturas fantásticas que sempre se encontram em florestas densas, como no fim do mundo onde o mar cai no vazio como uma cascata. Se não existir fim do mundo, o aventureiro está disposto a seguir em frente até ao infinito. Que o infinito não tenha termo e ponto de chegada não interessa. Avançar, navegar, prosseguir. E há sempre entrepostos pelo caminho e sabe, ninguém sabe o que aí nos espera. Um bar com marinheiros desdentados que gritam baleias, sereias, dragões marinhos pelo meio dos soluços do vinho. Um dossel com uma rainha que é ao mesmo tempo uma fada que é ao mesmo tempo uma maga que é ao mesmo tempo uma flor tentadora e carnívora. Uma ponte frágil sobre um precipício. Uma gruta onde mora um ogre. Uma casa assombrada, uma princesa enfeitiçada, gatos grandes como elefantes, homens de duas cabeças, monstros, monstros, monstros. E mesmo que nada disto se encontre porque nada disto exista, alguma coisa sempre escapa ao naufrágio das ilusões. Alguma coisa sempre escapa ao naufrágio das ilusões.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Não são permitidos comentários anónimos.